15.12.20

EM QUE MUNDO VIVEM “ELES”?


CONTA-SE que, no séc. XVI ou XVII, um viajante terá dito que Lisboa era maravilhosa quando vista de LONGE (do estuário do Tejo), mas que, vista ao PERTO, era bem diferente: já para não falar na possibilidade de o forasteiro se deparar, logo à chegada, com um bom auto-de-fé, ele era os esgotos a correr pelas ruas; o lixo disputado por ratos e cães; as rixas, os pedintes, os vadios, os ladrões, os escravos, os proxenetas... — e por aí fora, numa descrição feita por quem ficou perplexo com o que viu, onde esperava encontrar o suprassumo da Civilização.

Aliás, a diferença entre o “ver de longe” e o “ver de perto” é semelhante à que existe entre o “visitar” e o “conhecer”, pois “conhecer” é algo bem mais profundo — que, no caso de povoações, implica viver nelas durante algum tempo. 

Sucedeu isso comigo, aqui em Lagos, onde desde a juventude eu vinha passar um par de semanas estivais, mas de onde abalava, depois de me saciar de sol e praia, sem ter ficado a conhecer minimamente o que me rodeava. Foi só mais tarde, quando me mudei para cá, que isso se alterou, dedicando então longas horas a calcorrear a cidade, mergulhando nas realidades da terra e das suas gentes, passando a ter uma visão em nada semelhante à superficialidade da anterior.

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ALIÁS, já nos finais dos “anos 70” eu me vira confrontado com um outro caso idêntico, ao passar longas temporadas na terra onde os meus sogros viviam (uma simpática aldeia que eu apenas conhecia de passagem), e onde a primeira perplexidade foi a ausência de energia eléctrica. E, de facto, apesar de estar a poucas horas de Lisboa e a dois passos da capital do distrito, ainda em 1980, para ter luz no quarto, tive de construir um cadeeiro com lâmpadas de automóvel, que ligava à bateria do carro com um cabo saindo pela janela!

Ora, e se, AINDA HOJE, em pleno séc. XXI, CTT, JF, C.M., bancos, farmácias, restaurantes, indústrias e comércio estão a mais de 5 km (e não há transportes públicos!), imagine-se como seria nessa época — para já não falar das muitas terras em redor, ainda mais distantes da Civilização. 

Quanto a telefones, ainda em finais do séc. XX havia apenas um posto-público (por sinal na casa dos meus sogros, que tinham de o disponibilizar a qualquer hora do dia ou da noite), e poucas pessoas os tinham, porque quase todas viviam de uma agricultura de subsistência ou de pensões de reforma, para quem o custo do aluguer do aparelho e das chamadas tinha um peso significativo.

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ENTRETANTO, muitas coisas se modificaram, a começar pela demografia (com o êxodo para as cidades a levar os mais novos, e a lei-da-vida a levar os mais velhos), mas, apesar de ali ao lado agora correr uma IP e uma autoestrada, muitas das antigas limitações continuam a existir. Sim, ainda há, neste país, quem nem sequer tenha telefone! Claro que, entretanto, os telemóveis se generalizaram, mas não basta ter dinheiro para os comprar, é também preciso gastá-lo para os manter activos e, naturalmente, muitas pessoas conservam os modelos antigos — além de que há quem não os tenha, de todo. Imagine-se, então, o que foi, para estas, ouvirem na TV, no mês passado, os políticos a falar de Internetes e Apps como se fossem as coisas mais naturais do mundo! E imagine-se o que sentiram quando, nesse seguimento, o Governo as ameaçou de serem multadas (num valor superior ao que auferem por mês!) se não tivessem, e sempre à mão!, um telemóvel moderno, devidamente carregado, com Internet móvel (com o pagamento em dia), e com uma aplicação de nome inglês devidamente instalada!

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COMO se sabe, uma semana depois de anunciar esse delírio, o Governo recuou. Mas, então, de duas, uma: ou vive num mundo que nada tem a ver com o do cidadão-comum, ou resolveu aterrorizar a população para desviar as atenções de outros problemas — ou ambas as coisas. 

Qualquer das hipóteses é assustadora, mas é o que temos...

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C. Medina Ribeiro
Publicado no “Correio de Lagos”, no número de Novembro de 2020 (sem a imagem, disponibilizada por Luís Diferr).

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

Uma realidade que dói.
E que mostra que os nossos governantes, de direita ou de esquerda, de comum são umas cavalgaduras.

19 de dezembro de 2020 às 22:53  

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