Grande Angular - A Europa de dois gumes
Por António Barreto
O acordo a que os europeus chegaram esta semana agrada a toda a gente. Aos defensores do Estado de Direito, mas também aos que descaradamente violam alguns princípios, direitos e garantias. Aos países que formam uma maioria estável europeia, mas também aos que procuram excepções, como sejam os do Sul, os do Leste, os “Frugais” e os “Despesistas”. Aos que detêm o poder do livro sagrado dos valores europeus, mas também aos que criam regimes de excepção fundamentados em traços nacionais e na tradição. Mais um fim feliz para esta União, prodígio florentino de arranjos e rendilhados. É possível que assim consigamos viver mais um tempo, anos talvez, mas sabemos que se trata de novo adiamento.
No âmago dos problemas, estão, evidentemente, a questão nacional, a autonomia política dos Estados e a interpretação do ideal democrático que cada país ou família política defende. Nas principais crises europeias dos últimos anos, esteve sempre presente a questão nacional. Na Grã-Bretanha, a independência, como fundamento ou pretexto, está no centro do Brexit. Assim como com as Irlandas e a Escócia. Na Grécia, a nação foi factor de crise iminente. Na França e na Itália, os poderes nacionais estão no centro, real ou retórico, dos conflitos. Agora, na Hungria e na Polónia, os seus dirigentes tão pouco democratas recorrem ao argumento nacional, para contrariar as tendências dominantes da União. No Norte da Itália e na Catalunha, conhecem-se os contornos nacionais e regionais do problema.
Os mais importantes países europeus, assim como a União no seu todo, não souberam tratar deste tema convenientemente. E cada vez que julgam que está resolvido, regressa sempre. A galope! O êxito da direita e dos radicais franceses, italianos, austríacos, alemães e outros ficou sempre ligado à retórica nacional. E entre os radicais de esquerda, comunistas ou não, nunca falta o patriotismo: “cá em casa mandamos nós…”
Actualmente, esta espécie de patriotismo americano de Trump, que nos aflige há quatro anos, foi um bálsamo para as direitas europeias e os “nacionais” de qualquer bordo. Trump ajudou tudo e todos. Ajudou Boris Johnson e o Brexit. Ajuda a Irlanda se esta estiver contra a Europa. Ajudou os iliberais. Ajudou Orban e Morawiecki. Como apoiou Erdogan e Putin. Ajudou os que querem partir a União e enfraquecer a Europa.
Verdade é que a Europa e a UE andam a esticar há vários anos. O establishment europeu limita-se a condenar os patriotas e os nacionalistas, negando o problema. Foi o que fez com os italianos e os gregos. Com alguns espanhóis. Com os húngaros e os polacos. Com os franceses da Frente Nacional. O que é certo é que tudo quanto é antidemocrático na Europa aproveitou a oportunidade para fazer prova de vida.
É bem provável que já não seja possível classificar de plenamente democráticos os regimes em vigor na Hungria e na Polónia. Se admitirmos que a democracia e a liberdade podem ter graus, esses dois países estão certamente em défice. Os sistemas eleitorais, a liberdade de expressão e os sistemas judiciais, pelo menos, revelam já feridas indiscutíveis. Apesar de a União Europeia não ter uma medida nem um medidor, é razoável que os Estados membros e a União possam advertir esses países, dizer-lhes que passaram as marcas e ameaçá-los de represálias. Podem mesmo suspender os seus estatutos ou até expulsá-los. Tudo isso é grave, mas nada disso é surpreendente. A UE tem uma estrutura mais ou menos democrática, mas apoia-se ou reúne países democráticos. A democracia é a sua inspiração. Quem não a respeita vai-se embora, sai ou é expulso.
A imposição de regras de direito, de normas políticas e de procedimentos democráticos aceites pelos membros da UE, em países que têm uma versão própria da democracia, que tolhem a justiça, que condicionam a magistratura independente, que limitam as liberdades de informação e de expressão, é legítima e bem-vinda, mas totalmente absurda! A UE não pode vender nem impor democracia, a não ser por medidas de suspensão e expulsão. A Europa tem experiência suficiente para saber que a imposição de regras democráticas à força, com dinheiro ou exércitos, é uma receita desastrosa. Em África, na América Latina e na Ásia, nunca resultou.
Cada vez que os nossos aliados americanos, alemães ou ingleses têm uma qualquer reticência relativamente à política portuguesa e à nossa concepção de justiça, logo se ouvem reclamações de dignidade nacional e de independência. Protestamos contra a imposição de qualquer regra vinda do exterior, mesmo da União, mas, se nos faz jeito impor regras a outros, nomeadamente para receber fundos, não nos importamos com a ideia de exportar ou impor a democracia.
A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente. Acertem-se os sistemas de votação e revejam-se as condições de permanência, mas não se tente impor o direito e a democracia à força, com dinheiro.
É bom que os portugueses percebam que, se e quando chegar a nossa vez, teremos perdido a legitimidade para invocar a “dignidade nacional”. Se os países da Europa do Norte ou os países ricos da União ou qualquer outro grupo de países entende pôr em causa o valor do Estado de Direito em Portugal a tarefa é fácil. Os atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção; a prática impune de violação do segredo de justiça; a desigualdade de tratamento, pelo sistema judicial, dos pobres e das mulheres; o primado do Estado em qualquer processo entre os cidadãos e a Administração Pública; o mais desbragado machismo em casos de violência doméstica; a distorção, sempre desfavorável ao cidadão, do processo judicial fiscal; a existência de cláusulas secretas em alguns contratos de parceria público privada; as regalias e os privilégios de que gozam os arguidos muito ricos; estes factos chegam para pôr em causa o Estado de direito em Portugal e seriam suficientes para interromper os fluxos de fundos da União!
Ao mesmo tempo que a União deu prova de resposta concertada, no caso da pandemia, esta crise veio mostrar a fragilidade da construção europeia. Ora, mais uma vez se comprova que a Europa foi longe de mais. A União foi longe de mais. Recuar é difícil, mas vai ser necessário. Como é evidente, compete aos povos polaco e húngaro, assim como aos vizinhos do grupo dito de Visegrado e aos bálticos, guardar e enriquecer a democracia local. Como fizeram os americanos com o seu ameaçador presidente.
Público, 12.12.2020
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