15.6.21

No “Correio de Lagos” de Maio de 2021

DAS VIAGENS que, em finais dos ‘anos 90’, tive de fazer à República do Congo, retive dois factos que, hoje em dia, se me afiguram relacionados com a nossa realidade actual:

Um deles foi a obrigatoriedade da vacinação prévia contra a febre-amarela (ainda aqui tenho o certificado internacional...) — de que agora me lembro quando se fala de algo semelhante em relação à Covid-19.

O outro foi a surpresa que tive quando, antes de partir para Brazzaville, me deparei com a ausência de informações na Comunicação Social acerca da realidade local — o que me preocupou de sobremaneira porque o trabalho consistia na recuperação de equipamento eléctrico destruído numa cruenta guerra civil, ainda cheirando a pólvora (literalmente!) — e, como se sabe, quando a C. S. não reporta os acontecimentos, é como se eles não existissem.

Ora este último aspecto vem a propósito do drama que se vive em Odemira, pois há quem faça de conta que os problemas são apenas de agora. De facto, eles “só agora” apareceram à luz do dia porque não foi possível calar o surto de Covid-19, ficando a descoberto problemas da maior gravidade social e humana que já se arrastam há muito, não só ali como noutros lugares pelo país fora, «na criação de gado, nas vindimas (...), olivais e estufas chegadas aos regadios, especialmente na área de influência de Alqueva, (...), nos perímetros do Baixo Alentejo e do Ribatejo, o uso e o abuso (...) da força de trabalho imigrante e desprotegida são quase a regra...» (*). Portanto, esses trabalhadores, «marroquinos, árabes, sudaneses, nepaleses, tailandeses, romenos, indianos e outros» (*) não são só “viajantes” das suas terras para a nossa, mas também por cá se deslocam de umas para outras, ao sabor das necessidades das mais diversas actividades sazonais.
Claro que, no que respeita às condições que envolvem tudo isso, «os ministérios da Agricultura, do Trabalho, da Administração Interna, da Saúde e da Economia, o SEF, a PJ, a GNR e a PSP estão perfeitamente ao corrente do que se passa, há anos» (*), mas isso não sucede com o cidadão-comum que, como atrás refiro, só sabe aquilo que lhe dão a saber. No entanto, e se é compreensível que essa ignorância afecte o referido cidadão-comum, já não se acredita que alaste a jornalistas, sindicatos, políticos, movimentos anti-racistas e anti-não-sei-quê, com destaque para os que estão sempre de unhas afiadas quando lhes cheira à mais pequena manifestação que se afaste do “politicamente-correcto”.

Aliás, comparem-se os protestos que por cá tivemos no seguimento do assassinato de George Floyd (em Minneapolis, em Maio de 2020) com a passividade com que a nossa sociedade reagiu ao do ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrido dois meses antes quando estava à guarda do Estado Português. 

E compare-se, também, a fúria relacionada com a escravatura dos tempos do Infante (há mais de meio milénio!), com o silêncio face a algo semelhante que sucede mesmo à nossa porta.

 

EM SUMA, é bizarro ver como há quem dê mais atenção a problemas que estão longe (no espaço e no tempo) do que aos que tem debaixo do seu nariz — precisamente o contrário do que refere Eça em «As catástrofes e as leis da emoção», deliciosa rábula em que uma senhora lê, em voz alta, as notícias do jornal, contrastando a APATIA dos ouvintes a propósito das catástrofes distantes... com o HORROR com que acolhem a notícia de que a vizinha Luisinha Carneiro se lesionou num pé.

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(*) – Da crónica de António Barreto «Toda a gente sabia», publicada no «Público» do passado dia 8, e disponível em o-jacaranda.blogspot.com


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