Grande Angular - Coreografia orçamental
O debate orçamental, anualmente coreografado, é de reduzida importância nacional. O orçamento é importante, com certeza, mas o debate não. Pouco ou nada se explica à população, a não ser com intuitos demagógicos. Há sessões das comissões onde alguma coisa interessante se passa, às vezes. Há documentos produzidos pela UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) que são de real utilidade. Pouco mais do que isso. O hemiciclo destina-se a encenações ridículas, à berraria habitual, a poses para a televisão e a frases para os jornais. Realmente, pouco se passa.
Ou antes, o que ali se passa é revelador do pobre estado em que a política nacional se encontra. O que ali se vê são tentativas obsessivas de incomodar os adversários e de se mostrar na televisão. A inclusão no debate da questão das eleições antecipadas é sintomática.
Os debates orçamentais deveriam desenrolar-se com antecedência. Com informação e estudos de avaliação do que se fez. Com “a questão” do governo acertada na altura própria, não neste momento. Discutir uns benefícios para um grupo de pessoas, sem que a questão da maioria esteja resolvida, faz com que todas as discussões, por mais insignificantes que sejam, tenham sempre uma medida de chantagem: reprovar o orçamento e votar contra o governo. Em Portugal, não se discute orçamento nenhum, discute-se, isso sim, o governo e a maioria.
O que está em causa numa discussão sobre o orçamento? Uma percentagem reduzida da despesa e da receita. A parte flexível do orçamento ou a respectiva margem de folga é mínima. Muito mais de 90% estão comprometidos. É uma margem quase insignificante da despesa que permite, com leviandade, afirmar que o orçamento é de “esquerda” ou é de “direita”. E assim, informar a opinião, da vitória ou da derrota parlamentar.
A quase totalidade do orçamento está comprometida com despesas inadiáveis, direitos adquiridos, pagamento de juros e de dívidas, obras em curso, prestações e amortizações, vencimentos de cerca de 800.000 funcionários e pensões de alguns milhões de pessoas. As Obras Públicas, o funcionamento do Estado (com a Saúde, a Educação, a Segurança Social e as Forças Armadas à cabeça, sem esquecer os elefantes como a TAP, a CP e o BES), as pensões e os juros da dívida esgotam os recursos. A ideia de que se pode discutir muito, fazer alterações, obrigar a cedências e modificar radicalmente a orientação e a “filosofia social” das políticas públicas é falsa ou ingénua. E sobretudo uma fantasia. Quando os partidos aparecem na televisão a defender alterações radicais, mundos e fundos de nova despesa, mais subsídios e indemnizações em volume significativo, sabem que é mentira e não têm qualquer esperança de obter ganho de causa. Na verdade, o que fazem quase se esgota nisso mesmo: aparecer na televisão a fazer exigências. Para depois contar aos fiéis e aos eleitores. No caso de obterem migalhas, poderão voltar à televisão e garantir ao eleitorado que as vantagens, se as houver, foram da sua responsabilidade. Nada de novo.
O sentido da discussão orçamental é o da oportunidade de falar na televisão, de um partido se queixar de que as suas propostas não são aceites, de que as suas sugestões foram cruciais para um qualquer interesse de um grupo de pessoas. E também para se poder, meses depois, garantir ao eleitorado que o que se fez foi por causa das suas insistências e propostas.
Este ano, além da coreografia habitual, tivemos um foco, uma questão central, um enredo dramático: reprovação do orçamento, seguida de desordem política, dissolução do parlamento e eleições antecipadas. Que ninguém duvide: a transformação das eleições em arma política contra os adversários e contra as oposições dentro do partido é um recurso sórdido. O melhor que a democracia tem, as eleições livres, é transformado no seu pior, em arma vulgar, no mais baixo dos argumentos e na chantagem mais rasteira!
As eleições deveriam ser regulares e periódicas, certas como um relógio, previsíveis. Só excepcionalmente, muito excepcionalmente, teríamos eleições fora de prazo, adiadas ou antecipadas. Ao fazerem ameaças com eleições, ao aderirem à ideia de chantagem eleitoral, os democratas e os dirigentes partidários estão a tornar esse gesto e esse momento indignos e desprezíveis.
A democracia presta-se a dezenas de definições, com múltiplos adjectivos. Em geral, são descartáveis e servem para fins de circunstância. A mais simples definição de democracia é a do regime político em que todas as pessoas têm o direito de voto secreto, em eleições livres e regulares, após as quais quem ganha governa e respeita quem perde. Note-se a regularidade, que faz parte essencial da democracia. A eleição é um fim, um processo e um meio. Por isso deve ser previsível e regular. Partidos e eleitores devem saber ao que vêm. Ameaçar com eleições antecipadas, só por fraqueza e grosseria política. Utilizar as eleições antecipadas para trocar as voltas aos adversários, incomodar os correligionários ou obter vantagens indevidas é nefasto. Antecipar eleições implica quase sempre fugir ao debate político, evitar a aliança formal ou arredar a coligação conhecida. Com raras excepções, as eleições antecipadas mais não são do que golpes ou sinais de imaturidade democrática. É até possível que não haja brevemente eleições antecipadas, mas o que está em causa é a sua utilização como chantagem, própria de uma situação anormal que é a de parlamento e governo sem maioria, de arranjos provisórios e de elevação do oportunismo à categoria de arte de governo. Medida excepcional, a eleição antecipada deveria ser um recurso para reorganizar a democracia e dar nova vida ao governo, não para matar adversários.
As direitas estão tolhidas de medo perante a hipótese de eleições antecipadas. As esquerdas estão apavoradas com a hipótese de antecipar eleições. O governo já não quer antecipar eleições. Mas todos falam disso, porque pensam atemorizar os outros. Como conteúdo e estratégia de debate parlamentar orçamental não se poderia inventar pior. São dias maus para a República. E para a democracia.
Público, 16.10.2021
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