2.10.21

Grande Angular - Um conflito absurdo

Por António Barreto

Sob a aparência de um “fait divers”, está em curso um dos mais lamentáveis e graves episódios que envolvem o governo, demais autoridades constitucionais e as instituições militares, isto é, as Forças Armadas em geral, a Marinha em particular.

Raramente assistimos, em democracia, a uma sucessão de acontecimentos tão danosos para os militares. E em última instância para a República. Nos meios de comunicação circulam narrativas que dificilmente disfarçam a sua génese deliberada e maliciosa: ora constroem cenários nos quais os militares desempenham o papel do vilão, ora se esforçam por garantir que nada se passou, que nada aconteceu e que daqui não haverá consequências.

A verdade é que o normal processo de substituição de um chefe militar foi degradado, por motivos políticos e por razões menores, a ponto de ferir a honra de quem sai e a de quem entra. O que pretenderam exactamente os autores desta armadilha ou desta provocação não é totalmente visível. É mesmo fenómeno de rara opacidade. Serão simplesmente as autoridades políticas a tentar vingar-se ou exercer represálias sobre quem, mesmo sob reserva, emitiu opiniões próprias, diferentes das do governo? Ou será que os poderes políticos entendem que um militar prestigiado deva revelar vassalagem e que, posto na ordem, causará menos sarilhos a um governo e a partidos feridos com a sua falta de competência?

Será que tudo se pode resumir ao infeliz, mas matreiro, episódio da substituição do chefe de Estado-maior da Armada? Terá havido desleixo? Tratou-se de um incidente benigno no qual um subalterno não esteve consciente dos seus deveres? Foi um encarregado de imprensa que interpretou mal os seus superiores? É um assunto de rivalidades pessoais entre oficiais? Ou de competição entre políticos e militares? De um modo ou de outro, todas estas peripécias podem estar presentes, mas nenhuma diz o essencial, a nenhuma delas se resume este facto de excepcional gravidade.

Este caso só é percebido se o colocarmos no quadro das relações recentes entre civis e militares, entre os políticos e as instituições militares. Por um lado, governantes e partidos entendem que os militares não podem ter opiniões diferentes das suas ou, se as têm, delas devem abdicar. Por outro lado, os antigos chefes militares, entre os quais alguns dos mais ilustres e prestigiados das últimas décadas, foram chamados a emitir as suas opiniões, geralmente diferentes das dos civis do dia. Os nossos governantes não toleraram as opiniões diversas, mas recatadas, dos actuais chefes militares, nem admitiram que os antigos chefes militares fossem chamados ao debate e a dar opinião. Foi o que fizeram e bem, mas o governo não suportou o gesto feito de liberdade e de competência. Há aqui vingança? Há, mas não é o mais importante. Realmente decisivo é o facto de o governo querer vergar os militares, actuais ou antigos, e de pretender simplesmente afastar os que discordam ou têm ideias diferentes das suas. Como se sabe, um elevadíssimo número de antigos chefes militares opôs-se aos planos do governo para reformar as estruturas de comando militar, em gesto que teve também uma intenção implícita: a de apoiar os militares que, no activo, estão obrigados ao recato.

É verdade que, na história política portuguesa, sempre houve políticos e civis que se prostraram diante dos militares. Uns porque são assim, outros porque pretendiam utilizá-los em seu proveito. Mas, a maior parte do tempo, entre políticos civis cultiva-se facilmente o desprezo pelos militares e a complacência benévola por aqueles profissionais que “gostam de armas” e de “brincar às guerras”. Os políticos civis consideram facilmente o ofício militar com desdém ou com ironia paternalista. Assim é que tem sido fácil, entre nós, alimentar esta espécie de civilismo adolescente ou de pacifismo lírico que leva a redução das Forças Armadas a dimensões quase ridículas, assim como à desconsideração da condição militar.

extinção do serviço militar obrigatório, há quase vinte anos, imposta por quase todos os partidos políticos (com excepção do PCP), sem debate, em obediência à pressão das juventudes partidárias e na concretização das absolutas prioridades ao social, foi um bom exemplo do oportunismo e da demagogia com que se trata a questão militar. A par deste feito, outros confirmaram a mesma tendência: redução de orçamentos, diminuição de efectivos, anulação de compra de equipamentos e adiamento da modernização tecnológica, para já não falar das políticas de vencimentos, de saúde e de segurança social militares.

Com milhares de efectivos a menos do que deveria ser o mínimo indispensável, as Forças Armadas portuguesas têm geralmente executado as suas missões com distinção. Todas as intervenções militares internacionais das últimas décadas (em África, no Próximo Oriente, nos Balcãs, na Ásia e na Oceânia) trouxeram prestígio a Portugal e saldaram-se por êxitos políticos. Aumentaram a reputação do país e ajudaram com certeza a acção do Estado na ONU, na NATO, na UE, na CPLP, nas organizações ligadas às Migrações e às Polícias.

Nem será necessário referir que, nos últimos anos, a instituição militar foi uma espécie de último recurso em situações especialmente difíceis para as quais foram necessários meios excepcionais, a começar pela disponibilidade, a organização, a disciplina, a prontidão e a eficácia. Foram certamente os casos dos incêndios, da protecção civil, das operações de busca e salvamento e, ainda hoje, de cuidados de saúde e de vacinação.

Os políticos portugueses têm dificuldade em reconhecer a legitimidade das Forças Armadas, que não se limita à subordinação ao poder civil. Tal como na religião, na ciência e na justiça, há, na instituição militar, uma legitimidade própria e autónoma que os políticos têm de respeitar.

Os políticos portugueses, por ideologia, preconceito, ciúme e crença, não conseguem perceber que uma boa colaboração da instituição militar só enriquece a sociedade, o sistema social e o quadro constitucional. Habituaram-se a ver nos militares guardas dos déspotas ou golpistas encartados. Gostam de os ver como espécie em vias de extinção, como inimigos a abater ou como criados de servir. Não conseguem ver o que eles são hoje, defensores da liberdade.

Público, 2.10.2021

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