Grande Angular - Fronteiras
Por António Barreto
O historiador inglês Alan Taylor (mais conhecido por A.J.P. Taylor) disse que, em 1900, nos bons tempos de paz e progresso, era possível a um cidadão britânico deslocar-se de Londres a Istambul sem controlos policiais. Para se fazer entender, tinha de falar diversas línguas. Atravessava vários Estados, Principados, Impérios e outras entidades afins. Mas tudo isso se fazia sem passaporte. Depois, foi o que se sabe. Fecho de fronteiras, nacionalismo, duas guerras europeias (e mundiais), redesenho de Estados, criação das democracias modernas, nascimento do fascismo, estabelecimento do comunismo, fim dos impérios… Mas também a aviação, os comboios, as auto-estradas, os transportes individuais e colectivos de grande velocidade. A história do século XX foi uma cavalgada fantástica.
Ao longo de cinquenta anos, a Comunidade Europeia, depois União, afastou obstáculos, dispensou passaportes, unificou leis, criou uma moeda única e elaborou políticas comuns. São trinta países com longos passados de guerra e conflito que hoje vivem em paz, com quase totais liberdades de circulação, comércio e estabelecimento. Os seus dirigentes sonham com o fim das fronteiras. E tentam uniformizar o fisco, as escolas, os hospitais, a segurança social, as leis laborais, as instituições democráticas e a magistratura. Mas, no momento da sua glória maior, a de total abertura, a Europa está ameaçada pelos velhos fantasmas da rivalidade nacional. E também pelo renascimento de anseios de identidade e autonomia.
A imigração de milhões de pessoas, vindas de África, da Ásia e da América Latina, transformou-se numa das mais sérias realidades do continente. Com incalculáveis consequências, muitas delas vantajosas. Com efeito, os imigrantes trouxeram benefícios. Rejuvenesceram as populações. Aumentaram a natalidade. Alargaram a produção e o consumo. Dilataram as receitas da Segurança social. Permitiram a mistura de culturas. Contribuíram para o turismo. Abriram horizontes, renovaram a gastronomia e o vestuário. Tudo isto ao mesmo tempo que executam tarefas que os nacionais não querem fazer, designadamente trabalhos na agricultura, na construção civil, nas obras públicas, na indústria pesada e na limpeza.
Mas a emigração não tem só vantagens. Tem ainda enormes inconvenientes, nomeadamente quando é descontrolada. Está na origem de uma população ilegal e indocumentada. Cria uma concorrência desleal e distorcida entre trabalhadores nacionais e imigrantes. Faz baixar os salários médios dos trabalhadores residentes e legais. Enfraquece o sindicalismo. Alimenta os “guetos” e os bairros de comunidades separadas. Agrava as condições de habitação, sendo frequentes as situações de sobreocupação, de alojamento degradado e de mercado clandestino. Dá origem a novas formas de marginalidade que convive com o crime. Exerce pressão sobre as instituições educativas e de saúde. Traz consigo formas de “legalidade” e de comportamentos sociais, habituais para os imigrantes, mas ilegais e inaceitáveis para as sociedades ocidentais.
Entre nacionais e estrangeiros, entre residentes e imigrantes, criam-se delicadas zonas de confronto que pode facilmente transformar-se em perigoso conflito. Como é evidente, proclamar a virtude e os bons comportamentos não serve para coisa alguma.
Ora, é o descontrolo da emigração (e a sua ilegalidade) que está na origem dos preconceitos e de reais conflitos. Todos os fenómenos de racismo e de xenofobia recebem um impulso da imigração descontrolada. Cresce a xenofobia dos nacionais e dos estrangeiros. Aumenta o racismo dos nacionais e o dos imigrantes. Torna-se fácil, sobretudo em tempos de crise, acusar os imigrantes, assim como as minorias, de ladrões, marginais, violadores e contrabandistas. Torna-se frequente, nesses mesmos tempos difíceis, acusar os residentes e os nacionais de exploradores, racistas, colonialistas e traficantes de menores e de mulheres.
Não falta quem pense que os imigrantes são necessários pois têm menores salários, aceitam qualquer trabalho, podem ser despedidos à vontade, não se importam com a precariedade, não se sindicalizam e calam-se. Também não falta quem pense que os imigrantes têm especial inclinação para o crime, a marginalidade, a droga, a prostituição e o roubo e, por essas razões, não deveriam ser admitidos. Mas há ainda os que pensam que, sendo os imigrantes e os refugiados seres humanos como os outros, ainda por cima em situação de vulnerabilidade, devem merecer toda a espécie de apoios e ajudas, assim como especiais incentivos à integração. E os que entendem que receber imigrantes e refugiados é um acto de nobreza e civilização.
Há, dos dois lados, razões e preconceitos. O que interessa não é julgar, mas sim evitar o conflito. A verdade é que a emigração excessiva, descontrolada e ilegal se transformou no factor mais perturbador das sociedades europeias e dos sistemas políticos democráticos. Entre países membros da União e dentro de alguns deles, são já evidentes os conflitos que têm a imigração como razão. As forças nacionalistas, de direita e de esquerda, crescem significativamente nos eleitorados europeus. As forças de extrema-direita, mais sensíveis à pressão nacionalista, aumentam os seus resultados eleitorais.
Para os problemas actuais, há seguramente muitas soluções e opiniões. Mas há também certezas. Uma: o controlo, tão eficiente quanto possível, da imigração. Duas: a obrigatoriedade (imposta aos empregadores e aos empregados) de legalização e de contrato para as relações de trabalho e de habitação. Três: a regulação dos volumes tolerados, legalizados e contratados de imigrantes, em conformidade com as necessidades da economia e da sociedade. É seguramente ingénuo acreditar que esse controlo possa ser total. Mas se o for em parte, já é uma vantagem.
A União Europeia foi longe de mais. Já hostiliza o princípio nacional, o que é mau para a democracia e a paz. Também largos sectores da população, com e sem razão, contrariam a pressão federal e o princípio europeu. Se as autoridades, os partidos e a sociedade civil não prestarem atenção e se limitarem a proclamar as suas verdades a favor ou contra a imigração, a favor ou contra as nações e os Estados nacionais, teremos certamente, a breve prazo, acontecimentos imprevisíveis, desastrados e perigosos. É quase uma ironia pensar que as fronteiras e os passaportes podem voltar a fazer parte do quotidiano europeu. Mas já estivemos mais longe.
Público, 11.12.2021
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