22.12.21

No “Correio de Lagos” de Novembro de 2021

SE, A PROPÓSITO de um qualquer facto histórico, perguntarmos a alguém se quer saber a verdade ou o mito com ele relacionado, quase de certeza responderá que prefere a verdade. Mas raramente assim é, e um bom exemplo é a forma como meio-mundo distorce o que se passou na epopeia de Magalhães, omitindo factos importantes e fantasiando outros, com uma noção de patriotismo ao nível da antiga escola primária, havendo poucas pessoas interessadas em saber o que escreveram os cronistas da época, e muito menos em ler as narrativas de quem participou nessa viagem (*) — e fazem mal, pois a realidade foi muito mais interessante do que a ficção.
Nesse aspecto, nós fomos brindados com um bom incentivo para conhecer aquela quando, recentemente, tivemos o privilégio de poder visitar uma réplica da nau Victoria, uma das cinco que, em 10 de Agosto de 1519, partiram de Sevilha, com 237 homens a bordo, sob o comando de Fernão de Magalhães — não para “dar a volta ao Mundo” (como não falta quem diga), mas sim para ver se as ilhas Molucas (de incalculável valor no comércio das especiarias) caíam no hemisfério que, pelo Tratado de Tordesilhas, cabia a Espanha... com ordem expressa para, depois disso, VOTAR PARA TRÁS, não entrando no hemisfério português, pois Carlos I (futuro imperador Carlos V) não queria hostilizar D. Manuel I, com quem mantinha óptimas relações políticas e familiares.
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O PROBLEMA era que, para, por ocidente, se chegar a essas ilhas (onde, anos antes, Magalhães já estivera, viajando em sentido oposto, ao serviço de Portugal), era necessário descobrir uma passagem navegável entre o Atlântico e o Pacífico, oceano este que já se sabia existir: sucedera que, logo na primeira das suas três viagens, Colombo, em 1492, esbarrara no que sempre julgou ser a Índia; e, algum tempo depois, um outro navegador, Américo Vespúcio, informava o mundo de que, afinal, se estava em presença de um continente novo. Finalmente, em 1513, Balboa, atravessando-o (a pé?), deparou-se com o que estava “do outro lado”: nada menos do que um oceano, que baptizou de “Mar del Sur”, reclamando-o para a Coroa de Espanha. Assim, a descoberta de uma possível passagem de um oceano para o outro era o primeiro desafio que Magalhães teria de vencer, partindo para a sua viagem já sabendo, também, as verdadeiras dimensões da Terra (que, mais de 1700 anos antes, o grego Eratóstenes já determinara com precisão). Por outro lado, e em termos de relacionamento humano, a viagem foi tudo menos pacífica, dado que os comandantes dos outros navios eram espanhóis que não confiavam nele, o que esteve na origem de uma grave revolta que o capitão-general dominou com mão de ferro, recorrendo aos meios expeditos que, à época, eram considerados os mais apropriados...
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ORA, EM MAIO de 1520, naufragou a nau Santiago e, no início de Novembro, foi a vez de a San Antonio desertar, regressando a Sevilha — e então ficaram apenas a Victoria, a Trinidad e a Concepción que, pouco depois, encontraram a tão demandada saída para o Mar del Sur, que Magalhães rebaptizou de Pacífico. Seguiu-se uma dramática travessia desse oceano, tendo chegado no início de Abril de 1521 à ilha de Cebu, onde Magalhães, apesar de já não estar longe do destino fixado, não achou nada melhor para fazer do que baptizar o respectivo rei e toda a sua gente, criando os problemas que se imaginam. Não contente com isso, resolveu intervir, três semanas depois e dispensando a ajuda do principal interessado, num conflito local, em Mactan, onde foi morto.
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DEPOIS, e como uma desgraça nunca vem só, ainda morreram ou desapareceram 26 homens, quatro dias mais tarde, desta feita numa cilada em que caíram (na mesma ilha de Cebu), pelo que os sobreviventes, já reduzidos a pouco mais de uma centena, resolveram destruir a nau Concepción — ficando então, apenas, a Trinidad e a Victoria, tendo sido atribuído ao espanhol João Sebastião del Cano o comando desta. Quanto à tripulação da outra, dizimada por uma estanha maleita, acabou por se entregar aos portugueses, que já há muito tempo eram senhores daquelas paragens.
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FINALMENTE, a Victoria, nas vésperas do Natal desse ano e com 60 homens e uma preciosa carga de cravinho a bordo, decidiu-se por rumar a Ocidente, iludindo a vigilância portuguesa e chegando a Sevilha no dia 8 de Novembro de 1522, com apenas 21 tripulantes — completando aquilo a que Luis Filipe F. R. Thomaz apelidou, com humor, de “A Volta ao Mundo Sem Querer”, frase que completa o título do seu livro “O Drama de Magalhães”, cuja leitura vivamente se recomenda.
E quanto à estadia da réplica da nau Victoria na nossa terra, e que foi o pretexto para esta crónica? Bem... só posso dizer que quem, podendo tê-la visitado, não o fez, não sabe o que perdeu!
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(*) Os relatos coevos mais conhecidos são os de António Pigafeta, Martinho de Aiamonte, Gines de Mafra, Francisco Albo, entre outros cujo nome a História não reteve — para já não falar dos cronistas da época, que dedicaram muitas páginas ao assunto que assumiu a maior gravidade: a entrevista que D. Manuel concedeu ao navegador correu muito mal, tendo este estado a ponto de ser preso e condenado à morte, dado que o objectivo da viagem iria favorecer Espanha, com grave prejuízo de Portugal. O conflito (motivado, essencialmente, pela dificuldade prática em determinar a longitude do meridiano de Tordesilhas e, portanto, das Molucas) arrastou-se, com peripécias várias, até ao reinado de D. João III, vindo a ter um epílogo divertido, de que — quem sabe? — falaremos noutra altura.

 

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