7.8.22

Grande Angular - Sinistras equivalências

Por António Barreto

Está na moda. Já não é a primeira vez, mas agora a ideia regressa ao mundo dos vivos. Em poucas palavras: todos os regimes e sistemas têm defeitos, todos se valem, mas os capitalistas são os piores. A democracia é muito bonita, dizem, mas consagra a desigualdade, o poder dos mais ricos, a corrupção, a pobreza e a exploração do homem pelo homem. O comunismo, concedem, não respeita a liberdade de imprensa e de associação, nem o direito de voto, mas promove a igualdade, garante o emprego e não beneficia os capitalistas. Populismos de esquerda ou de direita, nacionalismos diversos, ditaduras militares ou clericais africanas, asiáticas e islâmicas têm as suas deficiências, mas também as suas vantagens: são geralmente patrióticos e conferem dignidade aos seus cidadãos que defendem da ganância de estrangeiros. Nesta sinistra amálgama, apenas se exclui o fascismo, diabo por excelência, inferno por definição e capitalista por obrigação.

Os argumentos dos defensores das equivalências são antigos, mas recentemente actualizados. A China e a Rússia têm dado novos alimentos a tão obtuso discurso. A ascensão da China nos mercados internacionais e nos inventários das forças militares marca uma nova realidade. A capacidade produtiva, industrial, financeira e comercial da China foi uma bênção ou um perdão para uma das mais fortes ditaduras actuais. A invasão da Ucrânia pela Rússia contribuiu fortemente para mostrar, aos autores de tão estranhos argumentos, como dois sistemas tão diferentes podem ser tão parecidos. A descoberta de fascistas e nazis na Ucrânia confirma o perigo dos regimes democráticos. Como é sabido, os fascistas e os nazis ucranianos são muito piores do que os fascistas e os nazis russos. Segundo os mesmos, a aproximação da NATO por vários países da Europa central e de leste, antigamente comunistas, sublinha e revela a permanente atitude agressiva americana e europeia, assim como mostra o verdadeiro cerco que o Ocidente pretende fazer à Rússia. Cada qual no seu género e na sua circunstância, Tramp, Bolsonaro, Chavez e Maduro vieram dar novo alento a formas imaginativas de populismo barato e de nacionalismo antidemocrático.

Há evidentemente quem acredite que as ditaduras chinesa e russa, além de outras, são mais aceitáveis do que as democracias ocidentais. Aliás, para tais pensadores, os regimes russo e chinês não são ditaduras, nem os regimes ocidentais são democracias. Esses são os mais fanáticos. Depois, temos os sofisticados pensadores de Boulevard e Universidade, mais orientados para sublinhar as equivalências. Com esta especialidade, estes autores desenvolvem a narrativa de última culpa e da primeira responsabilidade. Assim é que a origem das agressões russas está sempre na América, por vezes na Europa, indiscutivelmente na NATO. Estão dispostos a aceitar alguns “excessos” russos, como por exemplo a destruição de um país, na certeza de que os últimos responsáveis são os Estados Unidos e a NATO. Não fossem eles e a Ucrânia poderia viver em paz! São estes funcionários da narrativa antidemocrática que mais se entretêm a demonstrar as equivalências. E estão já prontos a garantir que as responsabilidades da recente agressividade chinesa são… americanas!

Ora, os regimes democráticos não são iguais aos outros. É aliás por isso que tantos países, há quase cem anos, sem razão, se proclamam democráticos e populares. Repúblicas e democracias populares são democracias de cenário, com liberdades de associação e de expressão limitadas ou inexistentes. A regularidade da eleição e o sufrágio secreto são ficções. O domínio do Estado, das Forças Armadas e do partido do governo é total. A liberdade económica é limitada. A criação cultural é controlada. O direito de associação é condicionado. O direito à greve é crime. A liberdade religiosa é inexistente. Nunca um partido, que não seja o do governo, ganhou uma eleição. A vigilância policial é uma arte elevada à perfeição. 

Nas democracias, geralmente ocidentais, há enormes problemas e defeitos. Será necessário dizê-lo? Há desigualdade social, opressão económica, exploração e outras formas de desigualdade (étnica, racial, de género, de geração, de religião). Em quase todas as democracias, há pobreza, desemprego, marginalidade, criminalidade e tráfego de droga. Podem existir formas opressivas de convívio social, incluindo o machismo, o racismo, a intolerância religiosa, a exploração sexual e a violência de costumes. Há democracias com excessos de burocracia, de militarismo e de fanatismo religioso. Como há, em quase todas as democracias, corrupção a mais. Em certas democracias, há fabricantes e comerciantes de armas com grande capacidade para influenciar as autoridades políticas.

Tudo isso existe nos países mais ou menos comunistas e nos países de ditadura militar ou burocrática em quantidades bem superiores às dos países democráticos, onde o Estado de direito, a liberdade sindical e a luta política permitem controlos, moderação, melhoramento e castigo. Até há pouco, o que faltava nos regimes socialistas e comunistas eram capitalistas e fortunas colossais. Mas agora, tanto em ditaduras marcadamente comunistas, como a chinesa, ou burocráticas e imperiais, como a russa, há capitalistas e oligarcas em abundantes quantidades, com fenomenal poder e capazes de influenciar toda a vida política e social, assim como as relações externas e as forças militares.

Os defensores das equivalências, ou mesmo os que toleram as ditaduras chinesa ou russa, têm outra série de argumentos para justificar a sua preferência pela autocracia comunista ou aparentada daqueles países. São as citações de malfeitorias ocidentais, de preferência americanas, no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão. Também aqui o cinismo intolerante não passa despercebido. Primeiro, os defeitos de uns não justificam os dos outros. Segundo, as agressões ou violências ocidentais fora de portas são abertamente criticadas, corrigidas, alteradas e terminadas pelas vias habituais da democracia, da alternância de poderes, da liberdade de pensamento e de imprensa. Na verdade, as acções americanas ou ocidentais no Chile, no Iraque ou no Vietname não têm desculpa e são condenáveis, tanto quanto as de qualquer outro país em qualquer outra latitude. A grande diferença consiste na capacidade, ao alcance dos povos e dos partidos das democracias e do Ocidente, de debater, criticar, corrigir, melhorar e derrotar aquelas iniciativas e seus autores. A liberdade e o Estado de direito fazem a diferença. Mas há quem não perceba.

Público, 6.8.2022

 

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