Grande Angular - Ainda há tempo
Por António Barreto
Foi certamente um dos piores anos da nossa história recente. Ainda a pandemia não tinha acabado e já outras dificuldades dramáticas se ergueram. A doença exigiu um colossal esforço, em primeiro lugar das pessoas atingidas, milhares delas vítimas mortais, cujo número superou os das guerras em África ou da participação portuguesa na primeira guerra mundial. Depois, dos familiares. Em seguida dos profissionais de saúde, médicos, farmacêuticos, enfermeiros e auxiliares. E ainda, de milhares de pessoas nas autarquias, nos serviços de bombeiros e de transportes, e em dezenas de serviços, incluindo a administração pública, que viram as suas vidas atingidas e perturbadas. Ainda é preciso falar dos recursos financeiros, enormes, sem retorno, gastos nesta medonha voragem. Ou dos milhares de empresas obrigadas a reduzir actividade, despedir pessoal, suspender negócios, fechar portas e desistir. Ou da produção, do comércio e do consumo de bens e produtos adiados, suspensos e terminados. Ou dos pobres, que são sempre quem mais sofre. Ou dos trabalhadores, quem mais paga. Ou das classes médias, com destinos adiados e projectos perdidos. Ainda está por fazer o balanço sanitário, demográfico, social, económico e político de uma das maiores tragédias do tempo presente. O que, aliás, se pode dizer do mundo inteiro. Mas muitas circunstâncias fizeram com que se tivesse transformado em calamidade inevitável, quase natural, algo que era muito mais do que isso. O tempo virá em que se saberá mais e melhor o que se passou (está a passar), as suas causas e as suas consequências.
A meio da pandemia, começou a guerra na Ucrânia. Ou antes, para ser mais preciso, a invasão da Ucrânia pela Rússia. É um dos actos mais medonhos da moderna história europeia. A violência e a destruição já conhecidas, frias e premeditadas, alcançam níveis de horror raros. A cooperação mundial foi posta em causa e tão cedo não conhecerá estabilidade. A segurança internacional está, na era contemporânea, sob inédita ameaça e não se vê melhoramento à vista. Dos países em guerra aberta, civil ou internacional, permanente ou intermitente, chegam números inquietantes de mortes (centenas de milhares) e refugiados (milhões), capazes de envenenar ainda mais os conflitos internacionais. Os nomes desses países são citados todos os dias nos jornais, já pouco significam, de tal modo nos habituámos, mas que ninguém duvide de que se trata de outras tantas tragédias: Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iémen, Moçambique, Iraque, Palestina, Nigéria e Centro-africana vêm à cabeça. Os equilíbrios da Guerra Fria morreram, só agora estão a ser substituídos por novos e provavelmente mais perigosos arranjos, que, para já, deixam o mundo suspenso.
Portugal não pode escapar às ameaças nem aos perigos evidentes. Não pode contrariar, sozinho, a inflação e o aumento do custo de vida. Não conseguirá, individualmente, opor-se ao recuo da globalização que ameaça o comércio internacional. Não está ao seu alcance resolver os problemas de subsistências e de matérias-primas que vão inevitavelmente surgir. Não terá qualquer meio de contribuir eficazmente para a solução das guerras de África e do Próximo-Oriente. Não poderá dar um contributo real para o fim da guerra na Ucrânia e do imperialismo russo. Nem terá influência na reconstrução dos equilíbrios internacionais, com especial relevo para a ascensão chinesa e os novos confrontos entre a América, a Europa, a Rússia e a China, sem falar na India e no Japão. Tudo isso está fora do nosso alcance.
Certo. Mas nada disso pode ser motivo, desculpa ou justificação para a maior parte das nossas dificuldades internas. Mesmo contando com tudo o que de mau vem de fora, clima, doença, guerra, conflito, terrorismo e êxodos massivos, mesmo assim Portugal tem meios, necessidade e experiência para resolver e salvar. E tem circunstâncias políticas favoráveis, com uma rara maioria parlamentar e uma inédita colaboração do Presidente da República. Também tem algum tempo, que é, aliás, o que mais rapidamente pode faltar. Este perde-se por razões humanas, por desperdício, por incompetência e por outros defeitos menos urbanos, como sejam a ganância, o roubo e a corrupção.
Não se sabe exactamente se é por causa das pessoas ou das políticas. Ou das duas. Mas a verdade é que, mau grado as circunstâncias favoráveis, o governo não se tem mostrado capaz de acorrer e arrumar a casa, quanto mais não seja para diminuir as ameaças e aliviar os fardos. A distribuição de pequenos cheques a grande parte da população pode ter o valor simbólico e real da compaixão e da justiça. Muito bem. Mas todos sabemos que essa não é a solução para o futuro. Todos sabem que o futuro depende da produção, do investimento, da justiça e da eficácia da administração e dos serviços. Todos sabem que, a esses factores, é indispensável acrescentar as empresas privadas, assim como um clima sindical de cooperação e responsabilidade.
Com tudo o que se passou e tem passado nos últimos anos, não se percebe que se tenha deixado cair o Serviço Nacional de Saúde ao ponto a que chegou. Não se entende que se tenha deixado derivar ou afundar o sistema de Justiça até onde se encontra hoje. Não se compreende que o sistema de educação ainda exiba dezenas de milhares de precários, milhares de horários por preencher até tão tarde e tão difíceis condições de acesso ao ensino superior. É difícil aceitar o declínio dos transportes públicos, do caminho-de-ferro, da companhia aérea e da construção do aeroporto de Lisboa. É incompreensível que, em nome do universalismo, do multiculturalismo e de uma política generosa de compaixão e acolhimento, se tenham deixado criar várias economias clandestinas ou paralelas, de quase escravatura, de marginalidade e de violência.
Sabe-se que muito do que precede se deve em parte à má gestão, à incompetência, aos interesses corporativos e ao amiguismo político. Sabe-se também que uma das razões políticas ou filosóficas reside no gradual e inexorável desaparecimento do espírito de serviço público e de apego ao bem comum. Mas, mesmo assim, há ainda a sensação de que é possível arrumar a casa e enobrecer a política. Ainda é possível escolher governantes que saibam e queiram fazer, não apenas estar. Para isso, por enquanto, ainda não faltam meios, recursos, empresas, paz social e estabilidade política. O que já começa a faltar é o tempo. Que tudo pode destruir.
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Público, 24.12.2022
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4 Comments:
Meu caro António
Os muitos anos que levamos como Amigos honram-me porque considero que és um Homem em quem posso acreditar – e acredito – por isso este meu comentário não é mais do que um voto de confirmação no que escreves e que assino pois estou completamente de acordo com ele.
Ficam-me, porém, uma série de perguntas que resumo numa só: o que nós cidadãos mais ou menos conscientes, mais ou menos empenhados podemos fazer? É que das palavras aos actos vai a distância que sabes (que nós sabemos). Não te peço uma resposta – mas um sugestão seria bem vinda.
Um abraço do teu amigo
Henrique Antunes Ferreira
Este comentário foi removido pelo autor.
«escolher governantes que saibam e queiram fazer, não apenas estar» Esperança, esperança, prezado Professor.
O/s PM limitado/s a recrutar no Partido?
Os recursos esgotados no PS?
Que 'qualidade' e perfil do manganão de Caminha, para braço direito do PM?
Que capacidades da Miss ex TAP para ser ali dispensada? para CEO NAVE? E dali recuperada para a governança Costa III?
Prémio de Cartão, nada a ver com os dos hipermercados. O Cartão que tudo garante, Cartão PS, mais tarde com entrada na Nova Classe e não é de Milovan Djilas de Tito
Caríssimo o compadrio,controlo e domínio é tal, que duvido das melhoras.
Sendo eu saloio,Duas personagens nunca me enganaram, Costa e Putin,cada uma no seu estilo.
1-Assisti(por acaso) à recusa de oferta de emprego.
Disse o empresário ao próprio;pois é melhor o subsídio e tomar o cafézinho.
Saí da empresa e na esquina lá estava o dito ao Sol a tomar o cafézinho.
2- Um familiar partiu uma vértebra,curvada pelas dores, foi às urgências do Hospital e remetida para casa com uns comprimidos e a operação só daqui a 4 meses.
Teve de recorrer ao particular e operada na semana seguinte. Custo 9.000€. Como era pobre foi subsidiada pela família.
Cada qual tire as suas conclusões.
Cumps.
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