Deste velho cacilheiro *Mas o Tejo é sempre novo
Por Antunes Ferreira
Andava eu pelos meus oito anitos quando o meu tio e padrinho Armando Antunes (do lado da minha mãe), primeiro-sargento da Força Aérea – então dizia-se da Aeronáutica – me inoculou com o vírus leonino o que me causou a “maleita” que continuou até hoje e irá (como costumo dizer) até ao forno crematório. A esse baptismo seguir-se-ia uns bons anos depois, o crisma cujo padrinho foi para mim o melhor presidente que nós leoninos tivemos na minha vida: João Rocha. De cor política antagónica mas isso nunca obstou que conservássemos uma óptima Amizade. Reservo-me para outra ocasião para contar a nossa comum “odisseia” sem Homero.
Basta de divagações e voltando ao meu tio e padrinho, lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, de no dia em que fiz os já citados oito anitos, além de me dar uma caixa de lápis de cor Faber Castell me te perguntado o que eu queria ser quando fosse grande. Os temas aéreos estavam na berra na família, o meu tio Jacinto Paiva Simões casado com a única irmã da minha mãe, a querida tia Lurdes era capitão aviador reformado.
Daí que a resposta fora imediata: “Quando for grande quero ser aviador!” Os meus tios Armando e Virgínia tinham aprazado com os meus pais um almoço num restaurante de Cacilhas. Por isso metemo-nos no Morris Minor HÁ-17-63 (verde-alface) que o meu pai Henrique Silva Ferreira acabara de comprar, tomámos um cacilheiro e ala que se faz tarde rumo a umas ameijoas à Bulhão Pato, qu’eu cá não era disso, por isso enquanto os casais tiravam a barriga de misérias com uns lagostins e duas santolas recheadas fiquei-me por belo bife com um ovo estrelado a cavalo e batatas fritas. No fim houve bolo com oito velas mas o que me deslumbrou (e até hoje isso acontece) foi uma estrondosa musse de chocolate!
Os ponteiros do relógio do tempo são uns maganos: não param; antes era porque não se dava corda ao instrumento; hoje é que a pilha deu o berro. Nunca mais dera por mim a pensar na viagem no cacilheiro. Mas a Raquel e eu fomos à revista no Maria Vitória e eis senão quando apareceu em cena o meu amigo Zé Viana vestido de marujo que cantou o Fado do Cacilheiro que eu sussurrei entre dentes para não incomodar a plateia:
«Quando eu era rapazote
Levei comigo no bote
Uma varina atrevida
Manobrei e gostei dela
E lá me atraquei a ela
Pro resto da minha vida.
Às vezes numa pessoa
A idade não perdoa
Faz bater o coração
Mas tenho grande vaidade
Em viver a mocidade
Dentro desta geração.
Sou marinheiro
Deste velho cacilheiro
Dedicado companheiro
Pequeno berço do povo.
E navegando
A idade foi chegando
Ai… O cabelo branqueando
Mas o Tejo é sempre novo.
Todos moram numa rua
A que chamam sempre sua
Mas eu cá não os invejo
O meu bairro é sobre as águas
Que cantam as suas mágoas
E minha rua é o Tejo.
Certa noite de luar
Vinha eu a navegar
E de pé junto da proa
Eu vi ou então sonhei
Que os braços do Cristo-Rei
Estavam a abraçar Lisboa.
Sou marinheiro
Deste velho cacilheiro
Dedicado companheiro
Pequeno berço do povo.
E navegando
A idade foi chegando
Ai… O cabelo branqueando
Mas o Tejo é sempre novo»
No final da revista fui aos bastidores onde o Zé não queria acreditar que era eu que ali estava. O abraço que trocámos foi mais um abração. A PIDE, como sempre, andava na sua peugada. “Continuam a ser uns filhos-da-puta! Não sabem ser outra coisa! Imagina tu, Henrique, que quiseram cortar o cacilheiro porque era subversivo!” E soltou uma daquelas suas gargalhadas. Das que até se ouviam na… António Maria Cardoso!
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