1.6.24

Grande Angular - Europa: O pior dos mundos, o melhor dos mundos

Por António Barreto

Dentro de uma semana, as eleições europeias serão apenas um teste. Nada ou quase nada que seja importante se resolverá. Por arranjo, o poder político na Europa não depende das eleições europeias, depende eventualmente das eleições nacionais. A construção europeia foi de tal modo feita que o que é democrático não é eficaz nem tem poder; e o que é eficaz e tem poder não é democrático. Assim é que a eleição para o Parlamento Europeu pertence à primeira variedade. Democrático, mas praticamente inútil. A opção, feita há décadas, de eleger directamente, sem contar com os deputados nacionais já eleitos, revelou-se um desastre. Funda uma nomenclatura, que é indispensável à democracia. Estabelece plataformas de contactos, o que é essencial. Cria uma ilusão, o que é muito importante. Mas não tem real poder. Não é eficaz. Não decide as grandes questões europeias. Não traduz a diversidade de comunidades e de culturas. Vive a miragem de uma cidadania que não existe.

 

Com medonhas guerras na Europa e às suas portas, isto é, na Ucrânia e no Mediterrâneo, estas eleições não terão qualquer efeito no desenrolar dos conflitos nem na paz. Nas vésperas de um afastamento suave americano, com Biden, ou de um abandono brutal, com Trump, estas eleições passam ao lado daquele que é um dos mais graves problemas actuais, a segurança. Com a Grã-Bretanha fora, com a França e a Alemanha em séria crise, sob a ameaça russa e diante da ascensão chinesa e da vitalidade indiana, as eleições europeias mostrarão sobretudo a inutilidade das suas instituições e o folclore de uma democracia de cenário, sem poder nem potência. Não se sabe se vivemos o fim da Europa. É possível que esta renasça ou se transforme. Mas esta fase da metamorfose é dolorosa e arriscada.

 

É ridículo ver que o que está em causa com estas eleições, num continente com centenas de milhões de habitantes, é um teste à configuração partidária dentro de cada país. Nestas eleições, ditas europeias, o que interessa aos portugueses é saber se o PS ganha ou perde, se o PSD perde ou ganha, se o Chega empata, se o PCP e o Bloco ainda conseguem e se a Iniciativa já lá está. Mas não nos sintamos diminuídos. Este enredo é igual ao de todos os outros. Em cada país, as eleições europeias servem para “aferir” os resultados nacionais pretéritos.

 

Esta perda de importância e de significado das eleições europeias é tanto mais chocante quanto coincide com as guerras actuais e a enorme crise que se anuncia para a Europa. Quando deveria estar mais forte do que nunca, por causa das ameaças externas, está a União talvez no seu mais débil momento.

 

Nós, Europeus, cometemos, nestas últimas décadas, erros quase fatais. Entregámos a defesa aos Estados Unidos. Confiámos na energia da Rússia, de quem ficámos dependentes. Exportámos a indústria para a China, que agora nos despreza. Explorámos a mão de obra da Índia, que hoje não nos enxerga. Abrimos as portas aos imigrantes, que agora nos preocupam. Deixámos de dar valor ao trabalho. Pensámos que a independência e a autonomia eram velharias de fidalgo. Ficámos seduzidos pelo exibicionismo dos ricos, dos frequentadores de casino e dos permanentes de capas de revista. Apostámos em trazer cá para dentro os piores dos mais ricos do mundo. Recebemos, com honras de aristocratas ou heróis, oligarcas de todos os continentes, de todos os mercados negros, de todas as mafias do planeta. Acreditámos na abertura desbragada de fronteiras, sem perceber que estávamos a estimular a clandestinidade, a ilegalidade e a marginalidade. Recorremos desenfreadamente ao trabalho imigrante que permite aos europeus descansar e dar-lhes tempo de divertimento.

 

Todos estes erros foram cometidos em quadro desfavorável à força europeia: o da globalização. Esta, apesar de indiscutíveis vantagens, significou uma efectiva perda do sentido cultural e do valor cívico da comunidade nacional. Todo o trabalho, colectivo e estratégico, feito no sentido de uma Europa mais homogénea, foi empreendimento suicidário: a Europa ou é plural e heterogénea ou não é. 

 

Nós, Europeus, temos o privilégio de viver no melhor dos mundos. Que também é o pior dos mundos. A sua história, a sua cultura, a sua política e o seu contributo para a humanidade fazem da Europa uma das mais prodigiosas construções humanas, com heroísmo e êxitos inigualáveis. Mas também com horrores indesculpáveis. O melhor do mundo foi aqui inventado ou desenvolvido. Soubemos criar, mas também importar e aperfeiçoar. Aqui foram concebidas as mais sofisticadas e complexas artes e letras, incluindo a filosofia, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e o teatro. Aqui se desenvolveram as melhores ciências do mundo, sejam as importadas e melhoradas, sejam as cá inventadas. É europeia, orgulhosamente europeia, uma das mais poderosas contribuições, talvez mesmo a mais relevante, para a descoberta de civilizações e o cruzamento de povos e culturas.

 

Mas também estão os Europeus entre os que aproveitaram ou desenvolveram a escravatura pelo menos tanto quanto os países e continentes que mais o fizeram. Estão na origem de algumas das perseguições, conversões à força, pogroms e inquisições mais ferozes da história. Mas também foi na Europa que se concretizaram, melhoraram ou inventaram os direitos humanos, a Liberdade, a igualdade entre as pessoas, a cidadania, o Estado social e a democracia. 

 

Foram Europeus os que ajudaram a fundar, desenvolveram e deram o principal contributo ao Cristianismo, uma das religiões que mais pugnou pela igualdade de todos e que mais baseou as suas doutrinas na dignidade individual da pessoa humana.

É europeia a religião mais capaz de separar o Livro Santo da Constituição, os Códigos Civil e Penal dos catecismos e das Sharias.

 

Os Europeus fundaram e desenvolveram uma das obras-primas da história da humanidade, o Estado-nação. Este é capaz das maiores obras, mas também se transformou numa das mais odiosas criações, o nacionalismo, com os seus devaneios de pobres de espírito, ricos de arrogância e despotismo. Aqui nasceram e se desenvolveram, ao longo de mais de dois mil anos, quase todos os importantes impérios da história, com as suas páginas de glória e de agressividade, de grandeza e de violência.

 

É talvez o continente com mais séculos de guerra entre os seus povos, com algumas das guerras mais mortíferas da história da humanidade, com mais conquistas longínquas de outros povos e com mais massacres de civilizações alheias. Mas a Europa também é o continente com a mais importante, longa, pacífica e durável aliança política entre os seus Estados. Cuidar da Europa é cuidar de nós. E da nossa liberdade.

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Público, 1.6.2024

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