30.3.08

A balbúrdia na escola

Por António Barreto
AS CENAS DE PANCADARIA NA ESCOLA têm comovido a opinião. A última em data, com especial relevo, ocorreu numa escola do Porto e foi devidamente filmada por um colega. Em poucas horas, o “clip” correu mundo através do YouTube. A partir daí, choveram as análises e os comentários. Toda a gente procura responsáveis, culpados e causas. Os arguidos são tantos quanto se possa imaginar: os jovens, os professores, os pais, o ministério e os políticos. E a sociedade em geral, evidentemente. As causas são também as mais diversas: a democracia, os costumes contemporâneos, a cultura jovem, o dinheiro, a televisão, a publicidade, a Internet, a permissividade, a falta de valores, os “bairros”, o “rap”, os imigrantes, a droga e o sexo. Para a oposição, a culpa é do governo. Para o governo, a culpa é do governo anterior. O trivial.
Deve haver um pouco disso tudo. O que torna as coisas mais complicadas. Sobretudo quando se pretende tomar medidas ou conter a vaga crescente de violência e balbúrdia. Se as causas são múltiplas, por onde começar? Mais repressão? Mais diálogo? Mais disciplina? Mais co-gestão? Há aqui matéria para a criação de várias comissões, a elaboração de um livro branco, a aprovação de novas leis e a realização de inúmeros estudos. Até às eleições, haverá alguns debates parlamentares sobre o tema. Não tenho a certeza, nem sequer a esperança, que o problema se resolva a breve prazo.
DE QUALQUER MANEIRA, a ocasião era calhada para voltar a ver a obra-prima do esforço legislativo nacional, o famoso “Estatuto do aluno”. A sua última versão entrou em vigor em finais de Janeiro, sendo uma correcção de outro diploma, da mesma natureza, de 2002. Trata-se de uma espécie de carta constitucional de direitos e deveres, a que não falta um regulamento disciplinar. Não se pode dizer que fecha a abóbada do edifício legal educativo, porque simplesmente tal edifício não existe. É mais um produto da enxurrada permanente de leis, normas e regras que se abate sobre as escolas e a sociedade. É um dos mais monstruosos documentos jamais produzidos pela Administração Pública portuguesa. Mal escrito, por vezes incompreensível, repete-se na afirmação de virtudes. Faz afirmações absolutamente disparatadas, como, por exemplo, quando considera que “a assiduidade (...) implica uma atitude de empenho intelectual e comportamental adequada...”! Cria deveres inéditos aos alunos, tais como o de se “empenhar na sua formação integral”; o de “guardar lealdade para com todos os membros da comunidade educativa”; ou o de “contribuir para a harmonia da convivência escolar”. E também os obriga a conhecer e cumprir este “estatuto do aluno”, naquele que deve ser o pior castigo de todos! Quanto aos direitos dos alunos, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar, incluindo os de participar na elaboração de regulamentos e na gestão e administração da escola, assim como de serem informados sobre os critérios da avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas, o modo de organização do plano de estudos, a matrícula, o abono de família e tudo o que seja possível inventar, incluindo as normas de segurança dos equipamentos e os planos de emergência!
TRATA-SE DE UM ESTATUTO burocrático, processual e confuso. O regime de faltas, que decreta, é infernal. Ninguém, normalmente constituído, o pode perceber ou aplicar. Os alunos que ultrapassem o número de faltas permitido podem recuperar tudo com uma prova. As faltas justificadas podem passar a injustificadas e vice-versa. As decisões sobre as faltas dos alunos e o seu comportamento sobem e descem do professor ao director de turma, deste ao conselho de turma, destes à direcção da escola e eventualmente ao conselho pedagógico. As decisões disciplinares são longas, morosas e processualmente complicadas, podendo sempre ser alteradas pelos sistemas de recurso ou de vaivém entre instâncias escolares. Concebem-se duas espécies de medidas disciplinares, as “correctivas” e as “sancionatórias”. Por vezes, as diferenças são imperceptíveis. Mas a sua aplicação, em respeito pelas normas processuais, torna inútil qualquer esforço. As medidas disciplinares são quase todas precedidas ou acompanhadas de processos complicados, verdadeiros dissuasores de todo o esforço disciplinar. As medidas disciplinares dependem de várias instâncias, do professor aos órgãos da turma, destes aos vários órgãos da escola e desta às direcções regionais. Os procedimentos disciplinares são relativos ao que tradicionalmente se designa por mau comportamento, perturbação de aula, agressão, roubo ou destruição de material, isto é, o dia-a-dia na escola. Mas a sua sanção é de tal modo complexa que deixará simplesmente de haver disciplina ou sanção.
O ESTATUTO cria um regime disciplinar em tudo semelhante ao que vigora, por exemplo, para a Administração Pública ou para as relações entre Administração e cidadãos. Pior ainda, é criado um regime disciplinar e sancionatório decalcado sobre os sistemas e os processos judiciais. Os autores deste estatuto revelam uma total e absoluta ignorância do que se passa nas escolas, do que são as escolas. Oscilando entre a burocracia, a teoria integradora das ciências de educação, a ideia de que existe uma democracia na sala de aula e a convicção de que a disciplina é um mal, os legisladores do ministério da educação (deste ministério e dos anteriores) produziram uma monstruosidade: senil na concepção burocrática, administrativa e judicial; adolescente na ideologia; infantil na ambição. O estatuto não é a causa dos males educativos, até porque nem sequer está em vigor na maior parte das escolas. Também não é por causa do estatuto que há, ou não há, pancadaria nas escolas. O estatuto é a consequência de uma longa caminhada e será, de futuro, o responsável imediato pela impossibilidade de administrar a disciplina nas escolas. O estatuto não retira a autoridade na escola (aos professores, aos directores, aos conselhos escolares). Não! Apenas confirma o facto de já não a terem e de assim perderem as veleidades de voltar a ter. O processo educativo, essencialmente humano e pessoal, é transformado num processo “científico”, “técnico”, desumanizado, burocrático e administrativo que dissolve a autoridade e esbate as responsabilidades. Se for lido com atenção, este estatuto revela que a sua principal inspiração é a desconfiança dos professores. Quem fez este estatuto tinha uma única ideia na cabeça: é preciso defender os alunos dos professores que os podem agredir e oprimir. Mesmo que nada resolva, a sua revogação é um gesto de saúde mental pública.
«Retrato da Semana» - «Público» de 30 Mar 08

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11 Comments:

Blogger António Viriato said...

Mais um excelente serviço público do Sorumbático : disponibilizar à «cidade e ao mundo» as palavras inteligentes e oportunas de António Barreto sobre este aborto de documento que tem o nome de Estatuto do Aluno, designação pomposa, pretensiosa, mas confusa e inútil, por ineficaz, pelos fundamentos em que se baseia e pelos complexos que a sua elaboração denota.

Restitua-se primeiro a dignidade ao Professor na Escola, conferindo-lhe o exercício regular da autoridade, para assegurar um ambiente disciplinado, próprio para se ensinar e aprender qualquer coisa de válido.

Ponha-se cobro à palhaçada pseudo-democrática nas Escolas, onde as funções são claramente distintas entre os seus membros, tal como na Família, onde também não pode vigorar uma democracia institucional, sem que isto signifique a lei do chicote.

Quem não conceber graus intermédios nestes dois limites, revela-se incapaz de compreender e de aplicar qualquer noção de disciplina. E, sem esta, não há ambiente propício para a transmissão de conhecimentos, nem de adopção de comportamentos consentâneos com a apreensão, por parte dos estudantes, de quaisquer conceitos cívicos ou mesmo do que quer que se lhes queira transmitir.

Trinta e quatro anos para compreender coisas tão elementares atestam bem a dimensão do fracasso em que o nosso Ensino mergulhou e de onde teima em não sair.

30 de março de 2008 às 22:37  
Blogger Bmonteiro said...

Malfadado destino.
Que fazer?
Quantos bravos licenciados, mestres e doutores, laboriosamente empenhados durante tanto tempo, razoàvelmente pagos pelo OE.
Quantas horas de serviço e trabalho dedicado à causa.
Quantos cargos que assim se autojustificam, à manjedoura do Estado.
O regime não desenvolveu apenas um monstro na ordem económica e financeira.
Na Educação como noutros sectores, uma máfia de pseudo profissionais irresponsáveis, produzem papeis para que responsabilizando os «Regulamentos», possam desrresponsabilizar tudo e todos.
A começar pelo Ministro e a terminar no mesmo.
E na AR, a que é que se dedicam os para-profissionais da Política, os deputados da Nação?

30 de março de 2008 às 23:39  
Blogger Ensino Superior said...

sou pai e professor e confesso que a escola pública está a pagar pela burocracia enviada pelo ME. Há vários aspectos qie tornam a escola púbçica pouco competitiva, comparando com a escola privada. Só assim se justifica que os colégios estejam quase todos esgotados apesar das propinas elevadas.
Sou pai de um alunso que sempre frequemtou a escola privada e nunca tive problemas de maior. Este ano o meu filho por razões desportivas tem de frequentar uma escola pública e só tenho tido problemas. a começar pela forma como os alunos são avaliados que proibide praticamente um aluno de ter 19 ou 20 numa disciplina, depois toda uma dificuldade que é criada quando se pretende falar com um professor, para não falar da imcompetência de alguns professores que o Conselho executivo não consegue resolver.
De facto a tendência, a continuar assim, será para se criacar duas escolas a boa e a má e quem poder pagar já sabe a que deve escolher.

30 de março de 2008 às 23:42  
Blogger DA said...

Manuel, comentário 3

os problemas que aponta são da responsabilidade do CE. Não têm nada a ver com a burocracia do ME.

31 de março de 2008 às 00:42  
Blogger DA said...

"a começar pela forma como os alunos são avaliados que proibide praticamente um aluno de ter 19 ou 20 numa disciplina"

O que é que o ME tem a ver com isso?

Saberá certamente que há professores "forretas".

Mas nem todos são assim:

http://esb3-djcarvalho.edu.pt/administrativo/secretaria/pautas2p0708/12A.pdf

http://esb3-djcarvalho.edu.pt/administrativo/secretaria/pautas2p0708/12B.pdf

http://esb3-djcarvalho.edu.pt/administrativo/secretaria/pautas2p0708/12C.pdf

31 de março de 2008 às 00:49  
Blogger antónio m p said...

«Deve haver um pouco disso tudo» - diz o articulista. E depois discorre nesta lógica. Assim também eu, que mal sei ler e escrever... em inglês! Para complicar um pouco mais a cabeça do estimado senhor acrescento uma pergunta: São aqueles alunos dos "Carolinas Michaelis" que vão avaliar as professoras??? A questão até é simples, ou não?
amp

31 de março de 2008 às 02:39  
Blogger Pedro Sá said...

Sempre a mesma conversa do Barreto. O que ele se esquece é que qualquer medida sancionatória tem que ser precedida de um procedimento, nos termos constitucionais.

31 de março de 2008 às 08:53  
Blogger António Pereira said...

A propósito dos Link,s publicados pelo “DA disse...”, neles revelando a pauta de frequência dos alunos do 12.º Ano – Curso de Ciências e Tecnologia - de uma determinada escola do ensino secundário, também sei de escolas que, comparadamente com outras mais exigentes, atribuem grandes notas aos alunos que a frequentam, mas ainda não vi sair dali nenhum aluno que conseguisse entrar em medicina, apesar de terem 19 e alguns até 20. Porque será?

31 de março de 2008 às 15:44  
Blogger GS said...

Foi efectivamente a melhor análise que li sobre o 'alucinante' Estatuto do Aluno... bem como do ambiente que grassa actualmente nas Escolas :(

Qualquer Professor responsável que se preze e que preze o bom trato com os alunos na sua prática diária docente sentir-se-à ofendido com o estado da educação :(

O que fizeram à Professora e a muitos outros [basta ver o dossiê de vídeos 'Youtube' do Expresso desta semana] é de estarrecer!!

31 de março de 2008 às 16:41  
Blogger Nuno Marques said...

A aluna do Carolina Micaelis fez o que qualquer pessoa faria quando lhe tentam tirar o que não é seu. Lutou. O roubo é um crime e a professora deveria ser julgada por isso.

Quanto à disciplina, fico estarrecido com tanta vontade de submissão alheia. A escola, instituição da era industrial - tal como a fábrica, o quartel militar e a família nuclear heteronormativa - está a morrer tal todas as outras instituições que em nada se adequam à era pós-industrial. E, como sempre, em vez de aproveitarmos a crise educativa cliché que já dura há uns anos - e a económica que está a bater à porta - para começarmos a fazer aquelas perguntinhas que valem a pena fazer em qualquer fase da história, queremos é que alguém foda as criancinhas com o falo autoritário de uma instituição fascista que acha possível que um adulto seja responsável por 10, 20 ou 30 crianças ao mesmo tempo num quarto fechado. Quando nenhuma mãe ou pai mentalmente sãos pensariam ter e educar 10 filhos ao mesmo tempo.

A escola é um campo de concentração cujo único intuito é criar cidadãos lobotomizados. A sua dinâmica assenta numa repetida violação do bem-estar individual e dos direitos humanos mais básicos. (Já imaginou ter de pedir ao chefezinho licença pra ir mijar ou atender um telefonema no meio do trabalho? Os alunos têm de fazer isso, sabe?)

Em vez de eliminar de uma vez por todas este pesadelo opressivo e deixar a educação a cargo das famílias e comunidades, esperamos ainda hoje que o Estado faça aquilo que somos demasiado indiferentes e preguiçosos para fazer. Entretanto, a criança que passava a vida a fazer aquelas perguntas chatas que incluem sempre a palavra "porquê" e parecia ter curiosidade por tudo tem agora 15 anos, detesta ler, aborrece-se nas aulas e não sente interesse por nada senão pelo seu bem-estar material.

Mas o problema é a autoridade do professor...

3 de abril de 2008 às 22:21  
Blogger Pedro said...

Pensa tanto, pensa tão bem...
Pensaria ele assim se não tivesse andado na escola?

4 de abril de 2008 às 15:51  

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