19.3.22

Grande Angular - Círculos do Inferno

 Por António Barreto

frase é atribuída a Dante: “Nos lugares mais quentes do Inferno, encontram-se os neutros perante uma crise”. Bela frase, bom pensamento, mas aparentemente falsa: Dante não a terá escrito. Mas a condenação moral dos neutros ficou-lhe ligada para sempre na história.

Hoje, a neutralidade toma várias formas e feitios. A da equidistância, por exemplo. A virtude estaria nessa posição rigorosamente à mesma distância de Deus e do Diabo, do Capitalismo e do Comunismo, da democracia e da ditadura. Ou então a imparcialidade, que não é bem independência, mas que é mais abstenção ou indiferença.

Apesar da voz dominante de repúdio pela invasão da Ucrânia, ouvem-se com inusitada frequência, entre analistas, jornalistas, académicos e intelectuais, afirmações de distância e afastamento. A invasão da Ucrânia é injusta? Sim, mas não se deve ignorar o que foi a invasão do Iraque. A agressão à Ucrânia é violenta? Com certeza, como o foram as do Afeganistão e da Sérvia. O massacre dos ucranianos é condenável? Talvez, mas convém não esquecer a Síria. A Rússia está a esbracejar para além das suas fronteiras? É evidente, mas é necessário recordar o cerco que a NATO vem fazendo à Rússia há mais de vinte anos. Há imagens de cidades destruídas, de hospitais arrasados e de escolas incendiadas? É visível, mas não se esqueça que há ucranianos que pegam fogo para depois atribuir as culpas à Rússia. Os Russos não brilham pela sua vocação democrática? É possível, mas há grupos de extrema-direita e de nazis que se infiltraram nas Forças Armadas ucranianas e que provocam os Russos. A Rússia tem veleidades imperialistas? É provável, mas o verdadeiro imperialismo está do lado americano, europeu e ocidental, que há décadas cerca a Rússia com a NATO.

E há ainda as culpas próprias da Europa. Comprou gás e petróleo à Rússia, dela ficando dependente. Compra-lhe cereais e minério em grandes quantidades, explorando os seus recursos. Acolheu plutocratas, magnates, bilionários e mafiosos de vária estirpe. Permitiu negócios suspeitos. Não teve defesa própria.

Em resumo e poucas palavras: a equidistância serve para isso, culpar os Estados Unidos, a Europa e a NATO. São estes os verdadeiros responsáveis e os autores em última instância da agressão russa.

Na Ucrânia, não parece haver lugar para neutralidades. Não tomar partido nem ter opinião por indiferença pelo futuro daqueles povos? É possível. Escolher por simpatia pelo imperialismo russo e antipatia pelo capitalismo americano? Também é possível. Preferir a solidariedade com os Ucranianos? É imaginável. Defender a causa da paz e da liberdade, repudiando a agressão de um poder autocrático? É igualmente possível. E não deveria custar, a cada um, definir os termos de referência e tomar o seu partido. O que não é aceitável é desculpar o agressor, porque outros também agrediram. Ignorar a violência dos russos, porque os americanos também foram. Ser complacente perante os bombardeamentos russos, porque a NATO também os terá feito. Aceitar este acto de agressão porque houve a Líbia e o Iraque é atitude comprometida. São argumentos moralmente débeis e intelectualmente frágeis. Mas funcionam tantas vezes! Os russos têm razão porque os outros fizeram igual ou pior. Os Russos têm razão porque os ocidentais fizeram o colonialismo e são racistas. Tudo serve de argumento. Ora, nada desculpa a agressão russa, nada justifica o não recurso às vias diplomáticas e políticas para resolução dos diferendos e não há violência que ajude a aceitar outra violência. Não há precedentes morais para o horror!

É verdade que a guerra das armas deu lugar à guerra da informação. Como sempre. Não falta a intoxicação. Os Russos contrataram mercenários e ex-presidiários para conquistar as cidades. Os Russos fizeram vir milicianos da Síria e do Afeganistão. Também os Ucranianos contratam nazis e criminosos milicianos do ocidente. Os Russos bombardeiam deliberadamente escolas e maternidades, hospitais e teatros para aterrorizar a população civil. Os Ucranianos mandam explodir e incendiar as suas escolas, os seus hospitais, a fim de inculpar os Russos. Tudo isto é do domínio da mera manipulação. Mas de uma coisa há a certeza: o que tem mais possibilidade de ser verdade, o que é mais verosímil é o que se diz nos países onde há liberdade de imprensa.

Como não podia deixar de ser, em tempos de crise como esta, não faltam os excessos. Do lado ocidental da Europa e do Atlântico, também já começaram a ouvir-se vozes detestáveis e a ver gestos insuportáveis. Proibir Dostoiévsky, Tólstoi, Pushkin, Gogol e Turguêneiev é absolutamente estúpido. Censurar Tchaikovski, Shostakovitch e Prokofiev é ignorante. Proibir as agências de informação e os canais de televisão russos, mesmo os que dependem do governo (todos…), é evidentemente inadmissível. Sanear directores de orquestra, cantores, instrumentistas, solistas e coristas russos é abdicar dos nossos valores e colocar o ocidente no mesmo plano que o Governo russo. Proibir os russos de passear só por serem russos é tão reaccionário e tão antidemocrático quanto fazem os russos dentro do seu país e se preparam para fazer na Ucrânia.

Expulsar artistas, engenheiros, professores e trabalhadores só por serem russos, não por terem feito contrabando de droga e de capitais, não por andarem a ameaçar “dissidentes”, nem por se terem entregue a actividades criminosas, é um gesto xenófobo, persecutório e imbecil.

É sabido que muitos russos, tal como, em seu tempo, muitos italianos, colombianos, irlandeses ou chineses se encontram envolvidos em actividades criminosas com mulheres, droga, armas, minérios raros, tecnologia sofisticada, ouro, derrube de governos e crimes de toda a espécie. Daí a dizer que todos os russos são criminosos e devem ser espiados, perseguidos, eventualmente expulsos, vai um passo fatal que não deve ser dado. Proibir, interditar ou expulsar entidades oficiais russas, sejam organizações políticas, instâncias da Administração, federações desportivas, empresas do Estado e bancos trapaceiros é outra coisa. Pode até ser aceitável e necessário. Mas é por serem criminosas. Não por serem russas.

De qualquer modo, entre mentiras e provocações, desculpas e complacência, covardia e desonestidade, uma coisa é certa: há um país agredido, dezenas de cidades a arder e milhões de pessoas a fugir. 

Público, 19.3.2022

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1 Comments:

Blogger Fernando Ribeiro said...

Até que enfim estou de acordo com António Barreto! Aleluia! Já desesperava...

Antes do 25 de Abril, muitos portugueses emigrados na Europa foram chamados de fascistas e colonialistas, só por serem de um país que tinha um um governo que o era.


P.S. - O maestro Valery Gergiev foi demitido da Orquestra Filarmónica de Munique, não por ser russo, mas por ser amigo pessoal de Vladimir Putin. Mesmo assim, estou contra a demissão.

20 de março de 2022 às 02:21  

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