15.4.05

«Acontece...» - «A falar é que a gente se entende?»

(Crónica de Carlos Pinto Coelho)

Jorge Sampaio decidiu aliciar os franceses para a língua portuguesa, e José Sócrates quer que as crianças portuguesas saibam inglês. Duas boas ideias, jogadas em simultâneo. Falta cuidar do resto.

A iniciativa do Presidente foi concebida com apuro. Apoia-se na campanha "Eu Falo Português", que tem uma convincente página na Internet, padrinhos com o prestígio de Mísia e Figo, e vem em tempo oportuno. Há 24 mil estudantes de português em França, mas nunca houve tantas nuvens cinzentas a pairar por ali, quanto ao futuro imediato da nossa língua.

A própria rádio estatal France Inter anunciou recentemente a suspensão das suas emissões em português. Sei que o antigo embaixador em Paris, António Monteiro, estava activamente preocupado com a situação e esperava resolver atávicos problemas com o quadro de professores portugueses em França. Mas António Monteiro já não é ministro. Chega agora o peso presidencial. Veremos se a sua ajuda ao "sim" de Chirac no próximo referendo será o bastante para mudar o feio rumo das coisas. Mas o que se fez, foi bem feito.

Um relatório recente do British Council, citado pela revista Newsweek, prevê que, em 2015, haverá no mundo três mil milhões de pessoas falando inglês. É a velha utopia do esperanto transposta para a era da globalização, mas agora agarrada pela evidência dos factos. Só na China, onde o o ensino do inglês passou do secundário para o terceiro ano do básico, há mais crianças estudando o inglês do que todas as crianças de nacionalidade britânica. Faz todo o sentido que Portugal também queira ter as suas novíssimas gerações preparadas para o mundo que será o delas.

E não vejo que a entrada do inglês nos curricula do básico possa beliscar a urgência de um ensino mais eficaz do português. Não só são compagináveis como podem ser mutuamente estimulantes. No já referido relatório do British Council fala-se na criação de uma nova identidade dos cidadãos não anglo-saxónicos do futuro – a identidade bilingue – construída pela língua materna e pela língua inglesa desde os mais tenros bancos da escola. É enriquecedor mas é sobretudo inevitável para o entendimento entre os povos, que já hoje estão condenados a comunicar entre si ou desaparecer.

Agora: que língua portuguesa é esta que Jorge Sampaio quer ver espalhada em França, que língua portuguesa é esta que vai coabitar com o inglês nas cabeças das nossas crianças? Isso é o que cumpre cuidar.

Língua viva, língua de nação de imigração, não se espera que o português falado ou escrito apodreça nas tábuas do caixão da ortodoxia. Dificilmente um ucraniano ou moçambicano utilizará termos do português erudito nas suas conversas de autocarro, e é bem provável que o lisboeta comum já diga que está, brasileiramente, "numa boa". Tal como o inglês, afinal, que não é usado no Bangladesh como em Cambridge, no Dallas como em Londres. Língua de uso retoca-se com o uso. Nenhum bancário do Dubai ou da Colômbia pronuncia a palavra "thing" como o seu colega da City londrina... e apesar disso entendem-se todos os dias.

Outra coisa é, no entanto, dar como adquirido que a palavra "período" se pronuncia como "miúdo", que a publicidade na rádio possa vender "a casa que sonhou" ou que o noticiário da televisão pública fale em evacuar pessoas por causa de uma qualquer catástrofe. Nestes casos está-se no triste império da pura asneira, não no saudável território dos neologismos. Quando um professor ensina que o nome da letra G é "guê" em vez do "jê" de GNR, ou quando um veterano jornalista de televisão pede ao seu convidado que faça "a leitura semiótica" de um acontecimento, está-se em delírio, não em inovação. Não se confundam as coisas. Mas eu quero estar com aquela luminosa convicção de Agustina Bessa-Luís, expressa nas páginas da revista Actual do Expresso: «A língua controla tudo, não se deixa impressionar pelas redes dos satélites nem pelos códigos da Internet. É possível que o vocábulo "e-mail" venha a ser apagado, e outros. O génio do idioma (...) adapta-se mas não obedece.»

Regras. O que faz falta, com carácter de urgência, são regras. Práticas, mesmo que precárias, mesmo que para uso privado, mas regras. Num telejornal de uma estação portuguesa ouvi o mesmo nome pronunciado, sucessivamente, de três maneiras diferentes: pelo "pivot", por um jornalista em directo no exterior e por outro jornalista que fizera uma reportagem que apareceu pelo meio. Em cinco minutos, três versões e só uma correcta. O que traduz uma imensa displicência editorial pela correcção formal da mensagem (mas então eles não se falam antes de o telejornal começar?) ou, pior, incúria atávica em relação aos livros de estilo. Na RTP, por exemplo, há décadas que anda prometido, por sucessivos directores de informação, um verdadeiro livro de estilo, concordante com as responsabilidades de serviço público da casa. Tudo o que se conseguiu até hoje foi uma pequena brochura para uso corrente, mais preocupada com a normalização de protocolos jornalísticos do que com o uso da língua. Enquanto perdurar tamanha incapacidade, bom seria que ao menos mandassem comprar umas dezenas de exemplares do mais recente livro de estilo do Público e lhes dessem atenção.

É que, a manterem-os índices actuais de insucesso e abandono escolares, o português falado em Portugal será cada vez mais pobre, errático e moldado pelos media audiovisuais. Cada vez mais os grandes mestres da língua serão os textos jornalísticos, publicitários e telenovelescos, cada vez mais se falará na rua como se ouviu na rádio e na televisão. À falência da escola sucedeu-se o magistério das antenas, que por sua vez andam em barafunda auto-gestionária no que toca ao português.

Bem pregam Sampaio e Sócrates. Mas com que farinha se fará o pão que querem distribuir?
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«A CAPITAL» de 15 Abril 05

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1 Comments:

Blogger António Viriato said...

Oportuno e sensato artigo de alguém que já tem currículo nesta pugna por um português escorreito.É um erro pensar que só os Professores se devem preocupar com o ensino do Português. O idioma pátrio é uma causa de todos, do foro da cidadania e não é desculpando ou relativizando todos os erros, todos os solecismos, que melhoramos o seu ensino. O Português é uma língua de cultura, tem gramática e até para a ultrapassar, inovando a sua sintaxe, criando neologismos, é mister conhecê-la e pagar-lhe o competente tributo. Só intensificando a leitura, promovendo o conhecimento dos melhores escritores, é possível elevar o nível do actual português. Também é errado abandonar o estudo ou a simples leitura dos clássicos, porque são eles que nos mantêm em contacto com os tesouros da linguagem, mesmo se estes aparentemente passaram de moda. Muitos termos são repescados e voltam a entrar na gíria quotidiana, se continuam a ser conhecidos pela leitura dos clássicos.Pelo contrário, se só se lerem autores contemporãneos o conhecimento da Língua diminui e o nosso vocabulário empobrece, os nossos recursos linguísticos minguam. O respeito da Norma culta é igualmente necessário, para não cairmos no arbítrio, debaixo da norma dos ignorantes, que são sempre em número superior. Cuidado com essa famosa regra de que o uso faz lei. Só em casos especiais isso se pode aceitar e com uma sanção temporal bastante dilatada, para se não instaurar o caos linguístico, com contínuas alterações, deturpações, ainda por cima impostas por quem não está para estudar ninharias gramaticais. Veja-se com tem caído o domínio da regência verbal, entre nós. É cada vez maior o número de pessoas alfabetizadas que não sabe conjugar verbos no Futuro do Conjuntivo, no Imperativo, no Imperativo Negativo, no Pretérito Mais-Que-Perfeito, no Condicional, etc. Idem, com os verbos defectivos, idem com os conjugados pronominalmente ou na forma reflexa, os terminados em ir, em ear, etc., etc. E note-se que tudo isto era do simples domínio da Instrução Primária de há trinta e poucos anos. Hoje, muitos licenciados vacilam nestas ninharias. Com a Matemática, com a Física, com a Geografia, com a História acontecem casos semelhantes de deficiente aprendizagem. Que diabo se passou neste último trinténio democrático ?
Com o ensino do Inglês tudo isto melhorará ? Oxalá fosse verdade ! Desculpem a extensão do comentario, mas o défice de debate destas natérias é imenso e o pouco que vai havendo está dominado por demagogos arvorados em Pedagogos liberais, supostamente avançados ou evoluídos, que tudo desculpam, em obediência ao pensamento politicamente correcto, verdadeira praga mentalmente castradora, que urge enfrentar e desmascarar ou acabaremos todos mentecaptos, ainda que felizes pela igualdade na ignorãncia atingida. Ficaremos mais nivelados, mas sempre entre os últimos por esse mundo fora, ainda que nos passeemos de Mercedes, de Audis ou de Jipes de alta cilindrada.

15 de abril de 2005 às 23:44  

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