Contos Eróticos do Velho Testamento
Numa oferta da autora aos leitores deste blogue, o conto «OS REVESES DE LOT», do livro «Contos Eróticos do Velho Testamento» (referido num outro post) está afixado em "Comments".
No entanto, também pode ser enviado em formato Word a quem o pedir: basta mandar um mail para medina.ribeiro@netcabo.pt indicando, em «Assunto», «Conto».
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Para os leitores do Sorumbático, com amizade
Deana Barroqueiro
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OS REVESES DE LOT
Abraão saiu do Egipto para Nageb com a sua mulher Sara, os rebanhos e tudo o que lhe pertencia e Lot decidiu acompanhá-lo. Como a região de Nageb continuava muito pobre, resolveram regressar ao lugar do seu primeiro acampamento, entre Bethel e Hai, no sítio onde Abraão erigira pela primeira vez um altar a El-Chadai.
Todavia, as terras não eram suficientemente grandes para nelas se estabelecerem o tio e o sobrinho com bens tão avultados, pois Lot também possuía ovelhas, bois, servos e tendas e os seus pastores andavam sempre envolvidos em questões e zaragatas com os pastores de Abraão, o qual decidiu ter uma conversa com Lot para pôr fim àquele inferno:
– Peço-te, meu filho, que faças os possíveis para não haver conflitos entre os nossos pastores, pois eles são fonte de discórdia entre nós e isso não está certo, por sermos do mesmo sangue. Não te deves esquecer de que teu pai Harran era meu irmão!
– Meu tio, os teus pastores são soberbos e expulsam os meus servos com os rebanhos dos melhores pastos.
Estava zangado e não parecia disposto a ceder, por isso Abraão sugeriu, apaziguador:
– Não tens esta região toda diante de ti? Creio que será melhor separarmo-nos. Se fores para a esquerda, eu irei para a direita; se fores para a direita, irei para a esquerda.
Lot ergueu os olhos e viu toda a planície do Jordão, estendendo-se ao sul e ao norte do Mar Morto, inteiramente regada pelo rio e, por isso mesmo, tão fértil como a terra do Egipto ou os Jardins do Paraíso:
– Separemo-nos então, meu tio. E eu escolherei a planície, se mo permitires.
– Pois bem, tu seguirás para os vales do Jordão e eu ficarei nas terras de Canaã. Que o Senhor te acompanhe.
– E fique contigo também.
Separaram-se um do outro e Lot seguiu para oriente, até às pequenas cidades da planície e ergueu as suas tendas à entrada de Sodoma, cujos habitantes eram muito perversos e grandes pecadores, levando uma vida de devassidão e luxúria.
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Algum tempo depois de Lot se ter estabelecido na planície do Jordão, Kedor-Laomer, Senhor de Elam, aliou-se a Amrafel de Sennaar, a Arioc de Elasar e a Tidal de Goim e puseram-se em marcha, atacando e submetendo ao seu jugo todos os povos que encontraram numa vasta região, desde Achteroth-Karnaim até El-Faran, no deserto, devastando igualmente, no regresso, todas as terras dos Amalecitas e dos Amorreus, nas vizinhanças de Cades.
Os reis Bera e Bircha, das cidades de Sodoma e Gomorra, e os seus aliados Chinab de Adma, Chemeber de Ceboim e Çoar de Bela, saíram em defesa das suas terras e alinharam-se no Vale de Sidim para a batalha. Os quatro reis invasores, mais experientes na guerra, derrotaram os cinco reis defensores, fazendo-os fugir. Os soberanos de Sodoma e Gomorra, na sua fuga, caíram nos poços de betume que enxameavam a região e aí encontraram a morte.
Os vencedores saquearam as duas cidades, matando os velhos e fazendo prisioneiros a muitos homens moços, para os venderem ou usarem como escravos. Entravam em todas as casas em busca de mulheres que arrebanhavam, usando muitas delas para serviço e divertimento das tropas, nos improvisados bordéis onde eram violadas, por vezes até à morte, em apostas bestiais da soldadesca ébria de vinho e de sangue, ou forçadas repetidamente aos mais torpes deboches, até nelas já não restar nada de humano e esperarem a morte como uma libertação.
Quando os invasores se retiraram, levando com eles as mulheres mais jovens e belas que haviam guardado para escravas ou concubinas, deixaram para trás esse rancho de miseráveis criaturas, com olhos vazios de alma, ventres rasgados e apodrecidos. Lot também ia no grupo dos prisioneiros, depois de ter sido despojado de todos os seus bens e víveres, consolado na sua miséria por a mulher e as filhas terem conseguido esconder-se e, assim, logrado escapar ao destino das outras prisioneiras.
Um dos fugitivos de Sodoma correu a anunciar a desgraça a Abraão que vivia em Hebron :
– Teu sobrinho foi feito prisioneiro por Kedor-Laomer. Vai com outros prisioneiros a caminho de Elam.
O patriarca sentiu o coração pesado de dor:
– E a mulher e as filhas?
– Conseguiram fugir e refugiaram-se nos montes.
– Vou reunir a minha gente e partiremos sem demora.
Abraão enviou recado aos principais chefes da sua tribo convocando-os para um Conselho na Tenda da Reunião. Agradeceu ao fugitivo:
– Que El-Chadai te cubra de bênçãos, meu amigo! Agora vou reunir-me com os chefes de família, pois não há tempo a perder. Temos de alcançar as hostes inimigas ainda no nosso território e atacar de surpresa, pois só assim poderemos ter alguma esperança de vitória.
O patriarca não logrou obter ajuda do Conselho e nenhum dos chefes enviou homens para formar uma companhia de soldados, por isso, reuniu trezentos e dezoito dos seus mais valentes servos, nascidos na sua casa , e lançou-se com eles em perseguição do inimigo, fazendo marchas forçadas até às terras de Dan.
Quando os seus batedores avistaram as indisciplinadas e alegres hostes do rei de Elam a prepararem o arraial para a noite, arrogantes e seguros da sua força, Abraão disse aos seus homens:
– Vamos dividir-nos em grupos e esconder-nos até à noite, para atacarmos o acampamento de surpresa quando eles estiverem a dormir ou bêbados.
Durante muito tempo ouviram os soldados de Kedor-Laomer a festejarem com vinho e amor os seus triunfos, porém, Abraão só deu ordem de ataque quando o som da música se calou, Os seus homens, divididos em grupos, chefiados por ele e pelos seus aliados Aner, Echkol e Mambré, cercaram o acampamento e fizeram o assalto por diferentes lugares ao mesmo tempo, caindo sobre os descuidados inimigos que, no rescaldo das orgias, jaziam pelo chão inconscientes de embriaguez ou dormiam nos braços das escravas, esgotados nos excessos da luxúria.
Deste modo, quase sem encontrarem resistência, os nómadas do deserto destroçaram os adversários e puseram em fuga o rei de Elam, perseguindo-o até Hoba, ao norte de Damasco. Por fim, senhor do campo, Abraão passou revista ao acampamento abandonado, retomou as riquezas das cidades e dos povos saqueados e libertou os prisioneiros.
– Meu tio! – exclamou Lot, ainda incrédulo, quando o libertaram e viu o seu velho parente à frente das tropas vitoriosas. – Desde quando te tornaste guerreiro?
– Quando soube que te tinham feito cativo – respondeu, sorrindo do seu pasmo. – Não podia deixar um crente abençoado por El-Chadai ser escravo de um idólatra!
– Como soubeste da nossa desgraça? – o sobrinho abraçava-o, comovido, com o rosto molhado de lágrimas.
– Por um fugitivo de Sodoma. Contou-me os feitos criminosos de Kedor-Laomer e disse-me também que te levavam como escravo.
– E a minha mulher e filhas, tiveste alguma nova do seu paradeiro?
– Sossega o teu coração, meu filho, que elas estão a salvo nas minhas tendas, em Hebron, e em breve se reunirão contigo.
Ao ver como Abraão tinha vencido Kedor-Laomer e os reis seus aliados e ficara senhor de todos os despojos da batalha e do arraial, como era próprio da lei da guerra, o novo Senhor de Sodoma veio lançar-se a seus pés e suplicou-lhe:
– Dá-me as gentes da minha cidade e fica tu com os bens. O meu povo era livre, não deve ser feito escravo!
– De tudo quanto possuis não quero nada – retorquiu o patriarca com gravidade –, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas que enriqueci à tua custa!
Em seguida, libertou as mulheres cativas de Sodoma e devolveu-lhes todos os bens roubados pelos conquistadores, a fim de poderem regressar às suas terras e refazer as suas vidas.
– Nada quero para mim – afirmou ainda Abraão ao rei de Sodoma –, salvo o que os meus servos comeram e a parte do saque que cabe aos meus aliados Aner, Echkol e Mambré.
Finalmente, quando pôde descansar, Abraão sentou-se sob uma árvore e, abarcando com o olhar a belíssima planície do Jordão, recordou a promessa de El-Chadai, no seu sonho profético em Harran, de dar à sua descendência toda aquela região que ia desde o Egipto ao grande rio Eufrates e, no mais íntimo do seu coração, voltou a cobiçá-la com a mesma força da primeira vez.
Cerrou os olhos cansados e, sem dar por isso, adormeceu. Foi imediatamente envolvido pelas densas trevas das suas visões e ficou aterrorizado. Então ouviu a voz do seu Deus dizer-lhe: “Nada temas Abraão! Eu sou o teu escudo e a tua recompensa será enorme”. Cheio de amargura, o patriarca respondeu-Lhe no seu sonho: “Que me dareis, Senhor Deus? Não me concedeste filhos e, por isso, será Eliezer de Damasco, um escravo nascido na minha casa, o meu herdeiro!”. Imperturbável, El-Chadai repetiu uma vez mais a sua promessa: “Não é ele que será o teu herdeiro, mas aquele que sairá das tuas entranhas. Vês as estrelas no céu? Pois bem, assim será a tua descendência! Eu sou o Todo-Poderoso que te mandou sair de Ur, na Caldeia, para tomares posse desta terra”.
– Mas, quando, meu Senhor? – acordou com o seu próprio grito e suspirou de tristeza, quase de descrença.
Olhou de novo a planície. A Terra Prometida pertencia já a outros povos e o chefe nómada sabia que só por meio de uma guerra muito longa e sangrenta lograria expulsá-los das suas casas e cidades e esse tempo ainda não tinha chegado e, se chegasse, seria muito depois do seu tempo. Suspirou de pena e foi despedir-se de Lot para voltar ao vale onde vivia, enquanto o sobrinho regressava ao seu acampamento.
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Alguns anos de paz tinham decorrido desde a Guerra dos Nove Reis, quando um dia, ao fim da tarde, dois estrangeiros chegaram a Sodoma. Lot estava sentado à porta da cidade e ao vê-los iluminados pelo sol quente que baixava e lhes punha uma auréola em volta das cabeças, sentiu que aqueles dois seres não eram homens vulgares, mas emissários de El-Chadai, por isso, ergueu-se pressuroso, correu ao encontro deles e, prostrando-se com o rosto por terra, disse-lhes:
– Peço-vos, meus senhores, que venhais para a casa do vosso servo passar a noite e lavar os pés. Dar-vos-ei de comer e, quando tiverdes as forças restauradas, prosseguireis caminho. Levantar-vos-ei de manhã cedo e podereis atravessar a cidade com menos perigo.
Um dos estrangeiros respondeu-lhe:
– Não, meu amigo, passaremos a noite na praça.
Lot instou com eles, aflito:
– Ignorais, então, o perigo que correis? Não conheceis os hábitos dos sodomitas e os seus nefandos pecados? Não passeis adiante, peço-vos, parai antes em casa deste vosso servo.
Os estrangeiros acabaram por ceder e acompanharam-no. Lot, depois da guerra com Kedor-Laomer, deixara de viver em tendas e habitava com a família, há já alguns anos, numa casa à entrada de Sodoma. Mal cruzou a soleira da porta, mandou a mulher e as filhas tratar do jantar:
– Preparai já três medidas de flor de farinha e cozei pães ázimos no borralho, para os nossos hóspedes. Fazei prestes!
Tomou manteiga, queijo e leite e pô-los diante dos estranhos, sobre a mesa, ficando de pé junto deles, enquanto comiam. Quando terminaram, disse-lhes:
– Os leitos estão preparados e podereis ir dormir quando quiserdes.
Ainda não se tinham deitado nessa noite, quando os homens de Sodoma, desde os mais novos até aos mais velhos, todos sem excepção, nos seus trajos garridos e modos licenciosos, rodearam a casa chamando Lot numa grande berraria. Então o que parecia ser o chefe bradou num momento de pausa do alarido:
– Onde estão os homens que entraram em tua casa esta noite? Trá-los cá para fora, para os conhecermos.
Os mais jovens batiam com os punhos na porta, cada vez mais encarniçados pelo silêncio dos moradores.
– Ouvimos dizer que são estrangeiros, belos e requintados. Temos um grande desejo de os conhecer – gritou um mancebo entroncado e folgazão, sublinhando a frase com um obsceno menear de quadris que arrancou um coro de gargalhadas à multidão.
Lot sabia qual era o significado de conhecer para os sodomitas e que, por isso, os seus hóspedes corriam um grande perigo. Para tentar dissuadir os provocadores dos seus maus propósitos, veio à entrada e, fechando a porta atrás de si, rogou-lhes:
– Suplico-vos, meus irmãos, não cometais semelhante perversidade! Deus há-de castigar-vos.
Gritaram ameaças, exaltados pelo excesso da bebida e pela oposição encontrada:
– Se eles não saírem cá para fora, entramos nós!
– O que pedimos agora com bons modos, tomaremos pela força, se não abrirem as portas!
– Tira-te da frente – ameaçou o chefe da horda com irritação –, se não queres levar o mesmo tratamento que reservamos aos teus hóspedes!
Para salvaguardar a honra dos estrangeiros, Lot não hesitou em fazer um grande sacrifício no seio da sua família, propondo-lhes uma troca:
– Escutai-me! Tenho duas filhas muito belas e ainda virgens que vos darei, para fazerdes delas o que vos aprouver. Mas tereis de jurar que não tocareis nestes homens, nem lhes causareis dano algum, porque eles vieram acolher-se à sombra do meu tecto e, portanto, são hóspedes sagrados.
Várias vozes gritaram, coléricas:
– Retira-te! Deixa-nos passar! Sai daí!
– O que podia ser dado com volúpia, será tomado com dor!
– Maior será o nosso gozo!
– O que quereis fazer é contra natura, é um crime nefando! – insistia Lot, tapando a porta com o corpo. – E é um pecado contra El-Chadai, o Deus Todo-Poderoso, cujo profeta é Abraão, o meu tio, que vos salvou na Guerra dos Nove Reis, a vós e vossos parentes, da escravidão de Kedor-Laomer.
O cabecilha do grupo soltou um riso escarninho e mostrou Lot aos companheiros:
– Cá está um homem que chegou como estrangeiro e quer agora ser o nosso juiz. Pois bem, vamos fazer-te pior do que a eles.
Agarrou-o pelo pescoço e empurrou-o, batendo-lhe repetidamente com a cabeça contra a parede, até Lot cair inanimado no chão. Nesse momento, os dois estrangeiros abriram a porta, estenderam as mãos pela abertura e puxaram-no para dentro de casa, trancando-se de novo no interior.
Furiosos, os sodomitas avançaram para arrombar a porta, mas os sitiados lançaram-lhes do telhado azeite a ferver e substâncias a arder que incendiaram as roupas e os cabelos e feriram de cegueira os homens da frente; loucos de dor e aflição, os feridos esforçavam-se inutilmente por encontrar o caminho para fugir daquele inferno, mas chocavam com os de trás, provocando o caos na turba dos assaltantes.
Incitados pelos gritos de dor dos companheiros, os restantes sodomitas recompuseram-se e lançaram-se contra a porta com brados e insultos, quebrando a madeira em pedaços. Entraram de roldão pela casa, caindo com fúria assassina sobre os três homens e as três mulheres impotentes para resistirem à violência daquela horda enraivecida.
A excitação e a impaciência ruidosas dos sodomitas, causadas pela longa altercação e pelo estorvo imposto por Lot à satisfação das suas paixões, haviam-se transformado em sentimentos de ódio e desejo de vingança, ao sofrerem na pele as queimaduras das substâncias a arder lançadas pelos sitiados. Naquele momento já não buscavam o prazer lascivo dos sentidos, o gosto voluptuoso do interdito ou a curiosidade mórbida do pecado e da transgressão; queriam apenas fruir da dor e humilhação dos estrangeiros, estimular o fogo negro das suas almas com o som dos gritos, choros e súplicas das suas vítimas.
Por isso, não houve piedade, indulgência ou remorso, somente violência e crueldade, quando os seis prisioneiros foram agarrados pelos braços e pelas pernas, as roupas rasgadas em pedaços e arrancadas, para expor os corpos nus à mais abjecta manipulação, como fantoches articulados num jogo perverso de posições. Os algozes revezavam-se em grupos para os imobilizar, uns erguendo-os no ar ou sujeitando-os no chão, de pernas afastadas ou dobradas contra o peito, para serem repetidamente violados pelos companheiros, enquanto outros lhes seguravam as cabeças, lhes introduziam os sexos na boca, masturbando-se excitados pelos espasmos dos violadores e pelos movimentos convulsivos dos corpos rasgados e ensanguentados das suas presas.
Os sodomitas arrastaram as duas filhas de Lot e um dos hóspedes até à mesa comprida e estreita, deitando-os de bruços sobre o tampo, atravessados, com os braços e as pernas pendurados e presos pelos pulsos e tornozelos; Lot, a mulher e o outro estrangeiro foram suspensos pelos pulsos dos ferros onde o pastor pendurava as carcaças das ovelhas. E os algozes chicotearam-nos, retalhando-lhes as carnes e de novo os violaram e abusaram até ao sangue e à inconsciência. Por fim, saciados, soltaram-nos, abandonando os corpos profanados, quase exangues, na casa saqueada cuja desordem e imundície davam testemunho das brutalidades e horrores ali cometidos.
Só muitas horas mais tarde, já o dia nascera num silêncio apenas cortado pelo choro das duas moças, as vítimas do abominável assalto tiveram forças para cuidar das carnes maceradas, das muitas feridas e golpes, lavando-se do sangue e do sémen impuros, como se buscassem na frescura da água uma purificação que lhes devolvesse um pouco de dignidade humana.
Então, quando puderam falar, Lot disse à mulher e às filhas:
– Ninguém precisa de saber o que se passou aqui. Guardai segredo desta ignomínia, pois de nada tivemos culpa ao agirmos como manda a nossa lei.
As moças limparam as lágrimas e baixaram a cabeça em sinal de concordância. Então os dois estrangeiros falaram pela primeira vez:
– Não podemos deixar sem castigo o crime nefando que foi cometido contra nós! – disse o mais jovem dos dois, com raiva contida. – Mas, para que nada vos aconteça, tereis de abandonar esta casa e Sodoma para sempre.
– Quantas pessoas da tua família ainda vivem aqui? – perguntou o outro. – Manda sair desta região os teus filhos, filhas, genros e todos os parentes, pois vamos destruir estas terras, porque a nossa ira contra os seus habitantes é enorme e clama por vingança.
– Que ides fazer? – quis saber Lot.
– Algo de que jamais te esquecerás – garantiu o estrangeiro com um sorriso feroz que fez estremecer o sobrinho de Abraão. – Todavia deves dizer aos teus parentes que foi El-Chadai quem te apareceu em sonhos para te avisar do castigo deste povo sem lei, de outro modo não acreditarão em ti.
Quando se sentiu capaz de andar, Lot saiu e foi falar aos seus genros, dizendo-lhes:
– Tomai todos os vossos bens e ide-vos embora daqui, pois Deus vai destruir a cidade, para castigar a perversidade dos sodomitas.
Tal como os hóspedes haviam dito, eles julgaram que o sogro estava a gracejar e recusaram-se a fugir. Lot voltou para casa muito preocupado e a sua aflição foi ainda maior quando a mulher lhe disse que os estrangeiros tinham estado toda essa noite ausentes, não sabia onde. Já não se deitou, ficando à espera dos hóspedes, de coração apertado e só respirou de alívio quando os viu regressar ao amanhecer, cansados e enegrecidos de betume. Embora ardesse de curiosidade, não se atreveu a perguntar-lhes onde tinham ido e o que haviam feito durante essas longas horas de ausência. Os dois homens insistiram com Lot para que apressasse a sua partida:
– Sai daqui, quanto antes! Foge depressa com a tua mulher e filhas, se não queres morrer também com o resto da tua família, no suplício de Sodoma.
E como ele se demorava, os estrangeiros, cheios de impaciência, agarraram-no pela mão, assim como à mulher e às duas filhas e conduziram-nos para fora dos muros da cidade. Um deles insistiu mais uma vez:
– Foge, se queres conservar a tua vida. Não olhes para trás, nem te detenhas em parte alguma da planície, pois Sodoma e Gomorra, com os seus arredores, não tardarão a explodir em chamas e delas nada restará no fim deste dia.
– Para onde devemos fugir? – perguntou Lot, assustado, sem saber o que fazer e pensando como eram estranhos e poderosos aqueles hóspedes desconhecidos.
– Foge para os montes, de contrário morrerás!
– Não, meu Senhor, peço-te. Se fugirmos até ao monte seremos apanhados pela destruição da cidade e morreremos. No entanto, próximo daqui está Coar, onde poderemos encontrar refúgio. Não é tão grande como Sodoma ou Gomorra, no entanto gostaria lá viver com a minha família... É um lugar pequeno... mas pode salvar-nos a vida...
– Apressa-te, então, a refugiar-te nela, pois nada posso fazer antes de lá chegares e a nossa vingança não deve esperar.
Lot deixou a cidade sem saudades, levando o pouco que lhe restava dos seus bens e podia ser transportado numas trouxas. Quando já estava próximo de Çoar, viu uma chuva de enxofre e de fogo cair sobre Sodoma e Gomorra e a mulher, que se tinha atrasado, olhou para trás e ficou paralisada, muda de espanto perante o terrível espectáculo.
– Alguém incendiou os poços de betume! – gritou com desespero. – O mundo está a arder!
Sem se voltar, Lot bradava-lhe para se apressar e se juntar a eles, mas a mulher já não o podia ouvir. Os poços de betume incendiados pelos estrangeiros tinham propagado o fogo uns aos outros, em redor de Sodoma e de Gomorra, e explodiam como vulcões vomitando lava, pedras incandescentes e sal que cobriam tudo e tudo perfuravam. O cataclismo destruía as duas cidades, com todos os seus habitantes, a planície inteira e até a vegetação da terra. Elevava-se do solo um fumo sufocante semelhante ao de uma fornalha do inferno que envenenava as gentes e os animais em fuga.
A mulher de Lot, ainda imóvel, recebeu em pleno corpo uma rajada de cinzas e sal que a cobriram por completo de cristais brilhantes, incrustados a fogo na sua pele até a transformarem numa estátua petrificada. O sol erguia-se sobre a terra quando Lot, limpando as lágrimas, entrou na cidade de Coar, conduzindo as filhas que soluçavam e gritavam aos céus fumarentos o nome da mãe.
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A destruição de Sodoma e Gomorra aterrorizara todas as terras e cidades próximas, dando origem ao aparecimento de uma vaga de profetas que falavam da ira de Deus contra os pecadores e do fim do mundo, se os homens não se arrependessem dos seus vícios.
– O clamor dos pecados de Sodoma e Gomorra era imenso e chegou aos ouvidos do Altíssimo – bradava um velho asceta. – O Todo-Poderoso enviou os Seus anjos a Sodoma, todavia os sodomitas não os reconheceram e pecaram contra eles. Deus enviou-lhes, então, o castigo aniquilando as cidades e todos os seus habitantes, menos um homem e duas mulheres que lograram escapar à justiça divina.
Desde muito cedo, haviam corrido os rumores mais bizarros quer sobre as causas daquela calamidade, quer sobre a fuga, identidade e paradeiro dos três fugitivos de Sodoma miraculosamente salvos. Os estrangeiros que chegavam a Çoar ou a qualquer outra cidade das vizinhanças eram vistos com muita desconfiança pelos seus habitantes, por isso Lot e as duas filhas sentiram imediatamente esse estigma e animosidade nas pessoas que se viravam para os ver passar e ficavam a falar e a gesticular nas suas costas, com grande agitação e receio.
– Meu pai, somos impuras – dizia Oholibama, a filha mais velha, procurando conter as lágrimas –, fomos profanadas pelos sodomitas e as nossas carnes estão manchadas, por isso nos apontam a dedo como se fossemos leprosas.
– Ninguém se acerca de nós – queixou-se Timna rompendo em soluços. – Viram-nos as costas se lhes falamos e as crianças atiram-nos pedras e insultos.
Lot teve receio de continuar a viver na cidade e, um dia, resolveu partir de Çoar com as duas filhas, afastando-se para bem longe das terras habitadas e indo viver com elas para uma caverna escavada na encosta de um monte.
Levavam uma vida solitária, feita de trabalho e privações para poderem sobreviver, mas pelo menos tinham reencontrado ali a paz que lhes fora roubada pela gente perversa de uma cidade sem lei. As duas irmãs evitavam falar dos acontecimentos de Sodoma e das sevícias sofridas que ainda lhes povoavam o sono de terríveis pesadelos, pois as feridas da alma tardavam mais tempo a sarar do que as do corpo.
Um dia, Lot partiu bem cedo para a caça e Oholibama disse à irmã mais nova:
– O nosso pai está velho e não há homens nesta região com quem nos possamos casar, como é de uso em toda a parte.
– Eu não me quero casar com ninguém – gritou Timna, com voz trémula, deixando cair a escudela com os legumes para a sopa. – Achas que, depois daquilo eu podia consentir...
– Eu sei disso – respondeu a outra, com impaciência –, mas também sei que temos o dever de não deixar acabar a raça de nosso pai.
– E como o poderemos evitar? Mesmo que quiséssemos casar, como tu mesma acabaste de dizer, não temos vizinhos e a única criatura que por aqui passa, uma vez cada seis meses, é o velho almocreve.
– Escuta-me, minha irmã: se estamos desonradas, não abrigamos qualquer ilusão de encontrar maridos e os homens apenas nos causam asco e medo, podemos ao menos evitar que a raça do nosso pai se acabe com os nossos ventres estéreis.
Já impaciente, a irmã mais nova insistiu:
– Que podemos fazer para o evitar? Arranjar-lhe uma nova esposa? Onde?
– Aqui! Nós! – respondeu secamente Oholibama.
– Nós?! Dormir com o nosso pai? Endoideceste? Não temes o castigo de Deus?
– Já não temos nada a perder, Timna. E se Deus permitiu que os sodomitas nos profanassem, como pode castigar-nos por querermos dar uma descendência ao nosso pai? E para nós Lot não é um homem qualquer, é o nosso pai muito amado, por isso, com ele sofreremos menos do que se dormíssemos com um estranho. Esta noite é de lua nova, propícia à fecundação, vamos embriagar o nosso pai e eu deitar-me-ei com ele e da sua semente conceberei um filho.
Timna não disse mais nada e ela começou a preparar cuidadosamente a ceia de coelho temperado com salva, a erva da fertilidade, e pó de raiz de mandrágora que provoca delírios e fantasias.
E, nessa noite, enquanto Lot comia, Oholibama serviu-lhe o vinho de Çoar de que o pai tanto gostava e guardava avaramente nos odres de pele, mantendo-lhe o copo sempre cheio, até a língua do velho começar a entaramelar-se por entre assomos de riso desatinado.
No fim da ceia, o vinho e as ervas tinham cumprido a sua missão, pois Lot divagava, perdido num mundo de visões e devaneios e Oholibama ajudou-o a erguer-se e conduziu-o até à enxerga no canto da gruta, que preparara com palha fresca. Timna fugiu para o outro canto onde se enroscou na sua manta, tapando a cabeça, como se quisesse esconder-se do mundo.
Lot agradecia a devoção das filhas, sobretudo da sua primogénita e, choramingando, lamentava o destino cruel que Deus lhes havia dado e Oholibama acalmava-o com palavras de ternura enquanto o despia e cobria com a manta.
Quando o viu sossegado, despiu-se por sua vez, deitando-se junto dele e, no escuro, as suas mãos tocaram-no e a moça, a chorar, pôs-se a acariciar o pai com todos os gestos que os sodomitas lhe tinham ensinado para lhes dar prazer, arrancando-lhos à força de pancada e humilhações, mas que ela adoçava agora com ternura e compaixão. Apesar do vinho e da droga, o corpo de Lot ainda vigoroso, castigado por uma longa abstinência, começou a despertar e a reagir à massagem dos dedos, ao contacto húmido e quente dos lábios e da língua e, mal se apercebendo do que se estava a passar, saudoso de um corpo macio de mulher, aconchegou-se nos braços da filha como nos de uma estranha e, beijando-a e mordendo-a com sofreguidão, penetrou no ventre gasto por muitos homens, como no de uma meretriz, para lá deixar a sua semente.
Oholibama ficou imóvel até ele adormecer sobre o seu corpo, depois deslizou suavemente por debaixo das mantas e, recolhendo as suas roupas, foi deitar-se não muito longe da irmã, sufocando os soluços para ela a não ouvir.
Na manhã seguinte, Lot despertou um pouco tonto, confuso com os sonhos que tivera:
– Não devias ter-me deixado beber tanto – ralhou com a filha mais velha, fingindo-se zangado, mas sorrindo malicioso. – Dormi mal, sonhei estranhos sonhos.
As duas filhas soltaram um suspiro de alívio. De tudo quanto se tinha passado na véspera, Lot de nada se apercebera, nem quando se deitou nem quando se levantou. Guardava apenas a memória de ter bebido demasiado vinho.
Quando o pai saiu da gruta para trabalhar, Oholibama disse à irmã mais nova:
– Como viste, deitei-me ontem com o nosso pai e recebi a sua semente. Vamos embriagá-lo outra vez esta noite e tu deitar-te-ás com ele, para também ajudares a manter a sua raça.
Nessa noite foi a vez de Timna preparar a comida e, durante a ceia, serviram novamente vinho ao pai, até Lot se quedar num estado de semi-embriaguez, incapaz de reconhecer as próprias filhas quando estas o arrastaram para o leito, o despiram e deitaram.
Timna desnudou-se com dedos trémulos e deitou-se a seu lado, mas Oholibama vendo como a irmã se encolhia aterrorizada sob a manta, sem se poder mover, despiu-se por sua vez e estendeu-se também junto do pai, encostando o seu corpo nu ao dele, os seios pesados contra o dorso, os quadris contra as nádegas, as pernas enlaçando-se como cordas de seda, até a carne de Lot despertar da inconsciência do sono. Então Oholibama tomou uma das mãos de Timna e guiou-lhe os gestos, num lento deslizar pelo peito e pelo ventre do progenitor, para a irmã o acariciar tal como ela fizera na noite anterior. Lot abriu os olhos como um sonâmbulo durante o sonho para a ilusão de uma orgia de amor. Julgando sonhar, buscou avidamente na concha quente e húmida do corpo da mulher que o acariciava o esquecimento para a sua solidão e, arquejando de ansiedade, deixou-se perder de novo, desta vez nos braços da filha mais nova, fecundando o seu ventre profanado.
E, assim, as duas filhas de Lot conceberam do próprio pai que não se apercebeu, nem quando se deitou, nem quando se levantou, de que havia dormido com elas.
A mais velha deu à luz um filho, a quem chamou Moab e cujos descendentes foram os Moabitas e a mais nova teve igualmente um filho, de nome Ben-Ammi, pai dos Amonitas que, tal como os Moabitas, vivem ainda hoje.
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(Deana Barroqueiro – in “Contos Eróticos do Velho Testamento”, p.57, Editora Livros Horizonte, 2003)
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