29.4.05

«Acontece...» - «A ditadura das pastas de dentes»

Crónica de Carlos Pinto Coelho

Não acreditei. Na segunda feira, quando liguei o meu televisor e vi Eduardo Lourenço em pleno horário nobre, pensei que estava no ARTE, no People and Arts ou na Sic Notícias. Mas não, era mesmo a RTP 1. Que diabo, cultura no primeiro canal da televisão pública, a estas horas? Hmmm... e deixei-me ficar. Ainda bem, porque pude ver um trabalho são e escorreito de Anabela Saint-Maurice, com bom guião, bom som e bons enquadramentos, bom ritmo de edição. Mas, insisti, um programa interessante na hora habitual dos concursos? Mudaram hoje o director de programas da casa?

Lá me explicaram que era 25 de Abril, dia de tolerância e fraternidade. Podia, pois, excepcionalmente, permanecer, em paz e com proveito, no horário nobre do primeiro canal. Mas só nessa noite, porque as audiências haviam de ser tão parcas que as coisas haviam de voltar ao “normal”logo no dia seguinte. Ora parece que o programa foi visto por 538 mil pessoas, o que para mim é muito bom sintoma. Mas sê-lo-ia também para a ditadura das vendas de pasta de dentes – ou seja, do mercado publicitário e seus aliados na televisão pública de Portugal? Não, não foi. No dia seguinte já tinham regressado as coisas aos seus devidos lugares e correspondentes concursos.

Tal como são feitos em Portugal, os estudos de audimetrias revelam quantos televisores estão ligados nas casas das pessoas, quantas pessoas estão na sala, a que horas e a ver o quê. Não dizem se as pessoas estavam ou não estavam de facto a olhar para o aparelho e se gostaram muito ou não gostaram nada do que viram. Os índices de agrado interessam pouco por isso não existem. Ou seja, a Anabela Saint-Maurice ficará o resto dos seus dias sem saber quantos mais ( além de mim, que aqui me confesso) apreciaram o seu trabalho, e ao director de programas restará, para o seu trabalho, um redutor número de televisores ligados. Tudo isto é confrangedor e velho.

Portugal não tem leis reguladoras da colheita de audimetrias. Números tão vitais para uma programação responsável da maior escola pública do país, que é a televisão, continuam a ser ditados pelos interesses estritos do mercado publicitário. Que, por sua vez, governa a distribuição geográfica dos audímetros como melhor lhe convém. Mais audímetros onde a população consumidora é maior, menos onde estão os alentejos do nosso rendimento per capita. Fatal. Nada tenho contra isso e muito menos contra a Marktest, que é uma competente empresa - monopolista - que recolhe e trabalha os seus dados com eficácia e até prestígio internacional. Ela vai para onde a mandam os seus clientes, e se os seus actuais clientes têm por destino atávico a Buraca, ela não ruma à Capela Sistina. Tudo bem até aqui. O problema é que só isto não chega.

... E o resto? O móbil último das programações televisivas será apenas e só o entretenimento? Os telejornais existem principalmente para o “infotainment”da navalhada? Jornalista de telejornais tem de ser sempre um repórter dos lixos da sociedade? Desporto em televisão tem de ser sobretudo chicana de balneários de futebol? E os que vêem televisão, são tão só consumidores? Não podem ter outras identidades, outros propósitos e outra serventia? E quem decide não terá o dever de perceber com que gostos e desgostos se compõem os seus auditórios presentes e, sobretudo, os ausentes?

Esta semana, o provedor do canal público francês France 2, Jean-Claude Allanic, revelou ter recebido uma quantidade recorde de protestos de espectadores, por causa da cobertura televisiva dada à agonia do papa João Paulo II. Sobretudo um telejornal que dedicou cem minutos ao assunto, indignou 90 por cento dos 2.500 espectadores que enviaram mensagens ao provedor. E Allanic comenta: “A redacção (do telejornal) não pode poupar-se a uma reflexão mais profunda sobre o seu trabalho de jornalistas de serviço público, num ambiente por demais submetido às leis do marketing.” Diz depois que as televisões privadas têm todo o direito a ceder “com delícia e gula”aos embalos da actualidade mas que o serviço público tem o seu lugar e os seus deveres. “Será que a nossa missão é vender “cérebros disponíveis”à Coca-Cola, provocar lágrimas nas igrejas e fazer sonhar nas choupanas dos reinos de opereta?”

Também Marie-Laure Augry, provedora do terceiro canal de serviço público, France 3, veio esta semana a público dar conta de iguais protestos por parte dos seus espectadores. “Recordaram-nos os princípios da laicidade, condenaram a nossa falta de distanciamento, o vocabulário utilizado, e reprovaram o exagero de espaço dado à agonia do papa, em detrimento de outras notícias.”

Ora todos sabemos que não foi muito diferente a cobertura que a RTP concedeu ao mesmo assunto. Mas não há por lá nenhum provedor a recolher críticas dos espectadores, se as houvesse, e a construir com elas uma séria chamada de atenção aos responsáveis editoriais da casa.

Até nos Estados Unidos o presidente da Organization of News Ombudsmen, espécie de associação dos provedores dos Media, ele próprio provedor da National Public Radio, Jeffrey Dvorkin, não tem dúvidas sobre o assunto: “Um provedor não serve para nada se o jornalismo for de fraca qualidade. Mas a existência de um provedor é sinal de que a instituição noticiosa tem um compromisso com a excelência. Nós não nos substituímos ao mau jornalismo, mas não o desculpamos. Também tentamos educar o público para os padrões do jornalismo que recebe, de modo a que ouvintes e espectadores sejam considerados cidadãos, primeiro, e só depois consumidores mediáticos.” Nem mais.

Se as declaradas intenções do programa deste governo forem por diante, e se as competências dos anunciados provedores para a RTP e RDP couberem num sólido arcaboiço ético e independente, pode ser que se entranhe algum saudável constrangimento nos cérebros das suas chefias editoriais e os nossos Eduardos Lourenços deixem de ser atropelados, em horário nobre, pelo diktat dos vendedores de pastas de dentes.

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(«A CAPITAL», 29 de Abril 2005)

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