7.2.06

Caras caricaturas (*)

Cartoon de Bandeira - «DN» de 7 Fev 06
O TEMA já é velho mas, numa sociedade globalizada como é a nossa actualmente, o problema desencadeado pelas caricaturas de Maomé (que incendiaram o mundo islâmico - qualquer coisa como 1300 milhões de pessoas!) faz-nos recordar que há certos temas que devem ser objecto de cuidados acrescidos, especialmente quando se pretende usá-los para fazer humor.

Aliás, foi precisamente essa a opinião manifestada há dias por Raúl Solnado na TSF quando, juntamente com António Feio e Ricardo Araújo Pereira respondeu à questão que Carlos Pinto Coelho colocou:
«Pode fazer-se humor com tudo?».

Enquanto os dois mais jovens defenderam que sim, Solnado foi prudente e socorreu-se de um exemplo que - mal ele sabia! - pouco depois viria a revelar-se perfeitamente apropriado:
«Com a religião é preciso cuidado...» - pois é algo que mexe com o «sagrado», terreno altamente melindroso em que o nosso direito de fazer humor pode facilmente esbarrar com o direito que os crentes têm de não ser agredidos nos seus sentimentos mais profundos.

Tudo dependerá, também, da assistência, pois uma graçola que, contada à mesa do café, faz rir três pessoas, pode, se publicada num órgão de informação de grande audiência, revelar-se explosiva.

Há uns anos, e devido ao excesso de alumínio na água, vários diabéticos morreram num centro de hemodiálise em Évora, facto esse que inspirou Carlos Borrego, à altura ministro do Ambiente, a contar em público uma anedota segundo a qual se podia obter alumínio reciclando os mortos.

Foi demitido, mas é bem possível que tenha pensado (como agora oiço dizer em relação ao caso que está a dividir o mundo) que apenas estava a exercer o seu sagrado direito de liberdade de expressão de pensamento. Imagino que tenha sido também o que pensavam os adolescentes que há dias, em Lagos, andavam a fazer graffitis em residências, lojas e monumentos... até serem detidos pela PSP.
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(*) Publicado no «Diário Digital» e transcrito no blogue «ABRUPTO» em 7 Fev 06; e também no «metro» e no «DN» no dia seguinte.

14 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não concordo com a analogia. Carlos Borrego, ao contar aquela anedota, é mais parecido com algum líder religioso muçulmano que agora se pusesse também a fazer "cartoons" sobre Maomé.

Fazer "graffitis em residências, lojas e monumentos" também não é um bom exemplo, não só porque é geralmente sabido que não se pode escrever em edifícios que são propriedade privada, como se os jovens escrevem neles é exactamente com a intenção de infringirem a lei, não por desconhecimento dela.

Eu não vejo os "cartoons" em causa como humor, mas como crítica. Nem todos os "cartoons" são humorísticos e aqueles não me parece que visassem fazer rir ninguém. Portanto, também acho que a reflexão que este seu "post" faz sobre humor a propósito daqueles "cartoons" não vem bem a propósito.

7 de fevereiro de 2006 às 14:43  
Anonymous Anónimo said...

A liberdade e a justiça andam de mãos dadas. Não podemos é comparar liberdade de expressão com crime. Em relação ao Carlos Borrego foi uma piada de mau gosto, que apesar de não ser crime foi punida com a sua demissão. Em relação aos grafittis, é crime.
Os cartoons é um misto de sátira com humor, e o que provaram é que estavam correctos. A resposta ao cartoon do profeta com uma bomba na cabeça é responder com bombas, na mão, contra as embaixadas. Acho que o problema foi os cartoons estarem muito próximos da realidade. Para a próxima façam o profeta a respeitar as mulheres, por exemplo, pra ver no que dá.

7 de fevereiro de 2006 às 14:54  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A realidade é multifacetada, pelo que, para tudo, pode haver (e há) muitas opiniões.

No entanto, em relação a este caso, aqui ficam algumas "achegas":

1 - Citando um jurista:

O nosso Código Penal prevê pena de prisão para quem cometa «ultraje por motivo de crença religiosa, quem PUBLICAMENTE ofender pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa por forma adequada a perturbar a paz pública».

2 - O jornal dinamarquês em causa recusou-se apublicar caricaturas de Cristo... porque seriam ofensivas.

3 - Neste caso dos "cartoons" não é possível o velho argumento «Gostavas que te fizessem o mesmo?» porque a nossa noção de "valores" está de rastos.
Veja-se o achincalhar do hino e da bandeira.

4 - O recurso aos tribunias não teria qualquer efeito, visto que "o pretenso crime" não é crime no país onde foi "cometido".

5 - Inúmeras vezes me apetece escrever "isto e aquilo" neste blogue e não o faço para não ferir certas pessoas.

Trata-se de "sensibilidade", algo que é difícil de definir, e que não é universal nem quantificável.

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Mas tudo isto são apenas opiniões, evidentemente.

Obrigado pelo seu comentário.

7 de fevereiro de 2006 às 14:56  
Anonymous Anónimo said...

Julgo que em tudo isto há um aspecto que está a ser esquecido:

Houve apenas falta de sensibilidade do jornal dinamarquês ou houve a intenção de ofender - não "este ou aquele" mas a religião islâmica em si?

Pelo que se sabe até ao momento, foi o segundo caso, e não estava em causa achincalhar um Bin-Laden qualquer, mas sim aquilo de mais sagrado que o Islão tem: o seu Profeta.

Quanto aos exageros e disparates da reacção, é outra história - igualmente triste, lamentável e altamente preocupante.

Duarte

7 de fevereiro de 2006 às 15:46  
Anonymous Anónimo said...

o que é a sátira?
o que é a crítica satírica?

Lily

7 de fevereiro de 2006 às 20:54  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Lily,

Pelo que eu sei deles (e conheci muitos muçulmanos - de Marrocos, Argélia, Tunísia e Congo), acho que posso garantir uma coisa:

O facto de a sua pergunta pressupor que "aquilo" é uma sátira (e que Maomé é satirizável) já diz tudo acerca do abismo entre estes dois mundos em choque.

A minha sensibilidade impede-me de dizer (como li hoje num jornal):
«Tenho o direito de ofender, se me apetecer!» ou de perfilhar a teoria do MSTavares e que é «Se eles se ofendem o problema é deles».

Mas cada um é como é.

7 de fevereiro de 2006 às 21:39  
Anonymous Anónimo said...

"O abismo entre estes dois mundos"
Ora aí está Carlos, é exactamente essa a questão. Como dizia uma velhota da praia das maças, quando sai de casa e vê o quiosque da esquina cheio de revistas de gajas boazonas todas nuas também se sente muito ofendida, mas isso não a faz ir lá durante a noite e deitar fogo ao espaço. Em Copenhaga,um imã disse numa entrevista ainda há bem pouco tempo que, mulher sem a cabeça coberta anda a pedir para ser violada... será que as dinamarquesas devem começar a cobrir as cabeças para não ofenderem a cultura islamica?? O abismo cultural é imenso sim. Os holandeses , que têm mais de um milhão de muçulmanos, por exemplo, estão agora a começar a perceber que, a politica de tolerancia e integração de que tanto se orgulharam afinal foi um fiasco. As comunidades islamicas vivem num mundo completamente à parte. Partilham o espaço geográfico, mas não partilham mais nada. Nem a língua! E os nórdicos, com a sua política de tolerancia (...ah, sim, o tipo bate na mulher, mas enfim, o que queres, é a cultura lá deles, nós não vamos interferir, um dia ele há-de entender que nós não devemos fazer isso... ah, sim, o tipo está a escarrar no chão, mas enfim, é a cultura lá deles,nós não devemos ficar chateados porque aquilo que para nós é mau para eles não tem importancia, ah sim, o tipo tem três mulheres, pois a poligamia aqui não é permitida, mas enfim, é a cultura deles, não se diz nada... o tipo cortou a cabeça ao refém, ah sim, realmente não devemos cortar a cabeça às pessoas, mas temos que o compreender, ele está muito chateado com os americanos... o tipo incendeou uma igreja, matou e violou uma freira católica... pois, foi horrivel, mas temos de ver as circunstancias... )
O abismo.Pois. E que abismo.

7 de fevereiro de 2006 às 23:28  
Anonymous Anónimo said...

lily

Na mouche!

8 de fevereiro de 2006 às 10:19  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O problema é que continuamos a tentar "comparações" (as "gajas" das revistas, etc) para algo que é dificilmente comparável.

Talvez uma dúzia de bonecos grotescos (com divulgação no mundo todo, claro) de Cristo a ser sodomizado pelos apóstolos ou a fazer amor com a Mãe pudesse aproximar-se.

Mas nem isso, porque a representação iconográfica dessas pessoas é habitual, o que não sucede com Maomé.

Com este, o problema é duplo:
A sua representação, e a forma como foi feita - identificando-o com um assassino.

Recordemos que o próprio jornal reivindicou, em editorial, o «direito de desafiar, blasfemar e humilhar».

Por mim, é um direito que não reivindico, mas cada um sabe de si.

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Há também (e talvez essencialmente) um problema de dimensão:

Contar uma "anedota de pretos" à mesa do café é uma coisa. Mas contá-la na TV de um país africano(com repetição nas de todo o mundo)será a mesma coisa?

Há quem ache que sim, evidentemente. Eu não.

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Solnado foi sensato ao resumir o assunto numa pequena frase: «Com certas coisas há que ter cuidado»

8 de fevereiro de 2006 às 10:48  
Anonymous Anónimo said...

"Talvez uma dúzia de bonecos grotescos (com divulgação no mundo todo, claro) de Cristo a ser sodomizado pelos apóstolos ou a fazer amor com a Mãe pudesse aproximar-se."
Acredito que sim. Olhe, se calhar o Almodover até já terá pensado fazer um filme assim.... subsidiado por fundos europeus comunitários...
Já em relação à palavra blasfémia, (ou como a palavra pecado), não lhe cheira um bocadinho a idade média?

8 de fevereiro de 2006 às 22:01  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Lily,

Segundo o Dicionário da Texto Editora:

Blasfémia - do Lat. blasphemia < Gr. blásphemía;
s. f.,
palavra ultrajante, insulto contra a divindade ou religião;
insulto a pessoa ou a coisa respeitável;
praga;
impropério
.

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Ou seja:
A palavra está bem aplicada.
No entanto, a estranheza com que a encaramos é que já diz muito:
Numa sociedade em que se perderam os valores...

Nunca ouvimos os miúdos a cantar «Heróis de merda, nós os podres...»?

Actualmente só "a bola" é que é importante.

Não vimos o M. Sousa Tavares, há dias, furioso com as investigações do "Apito Dourado"?
E de cabeça perdida por causa do Vítor Baía estar a suplente?

9 de fevereiro de 2006 às 08:31  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Como este "post" (juntamente com algumas notas adicionais que escrevi) foi transcrito no ABRUPTO, aqui fica um comentário lá afixado por outro leitor:

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Sobre o comentário do leitor C. Medina Ribeiro:

O caso do Ministro Carlos Borrego e da triste piada sobre os diabéticos mortos por ingestão de alumínio é um belo exemplo daquilo que se discute. O Ministro não podia ter agido pior, ao contar essa anedota. Não por achar que a liberdade de expressão tenha determinados limites, mas sim porque, no humor, há sempre que ter em conta o contexto em que se produz qualquer tipo de material pretensamente engraçado. Da mesma forma que é de extremo mau gosto contar uma anedota sobre a morte num funeral, ou sobre nazis e judeus a familiares de vítimas do Holocausto, também o Ministro deveria ter estado calado. A isto chama-se bom senso. Isso nada tem a ver com liberdade de expressão. O Ministro foi demitido por motivos políticos (era insustentável a sua manutenção no cargo depois desse caso), e não por ter violado qualquer lei.

Ou seja: o humor tem que ser, necessariamente, enquadrado, por uma questão de sensibilidade e respeito para com aqueles que, verdadeiramente, se possam sentir magoados pelo seu teor. No entanto, não é nada disso aquilo que se passa neste caso das caricaturas de Maomé. A não ser que seja o próprio profeta a interpôr um processo contra os jornais que publicaram o cartoon e contra o cartoonista, mais ninguém se pode sentir ofendido.

É por isso também que discordo da nota nº 1, do leitor Medina Ribeiro. O artigo do Código Penal que referiu nunca se poderia aplicar ao caso em questão. As caricaturas não ofendem qualquer pessoa nem dela escarnecem em função da sua crença. Aquilo que acontece, infelizmente, é que temos um sem número de pessoas, largamente manipuladas (quantos daqueles que atacam as embaixadas viram, verdadeiramente, o cartoon?), e que se identificam com as práticas terroristas. Ora, esses, são exactamente aqueles que menos ofendidos podem estar com o cartoon. A insinuação pode, quando muito, indignar aqueles muçulmanos que repudiem o terrorismo e que não aceitem as inúmeras insinuações de ligação do islamismo ao terror, mas nunca aqueles que se mandam embombados contra as paredes de edifícios públicos. Esses devem, isso sim, sentir-se justamente representados pelo cartoon, e na figura de um inexistente Maomé bombista.

Aquilo que envergonha o islamismo e os maometanos, como referia recentemente uma edição jordana, são as notícias de palestinianos a explodir com autocarros, em Israel e na Palestina.

Todos temos o direito à indignação, por tudo aquilo que, na imprensa ou na rua, nos ofenda, e que consideremos despropositadamente agressivo. É essa a contrapartida válida da liberdade de imprensa, de expressão e de opinião. Se alguém tem o direito de defender ideias que nos ofendam, também nós temos o direito de, nos mesmos moldes, as repudiar. O único limite à liberdade de expressão é a difamação, e aí existem os tribunais para a julgar.

É triste vermos que o continente onde estas conquistas custaram tanto sofrimento - e o país onde estas conquistas são tão recentes - a vergar-se rapidamente ao medo do fundamentalismo, e a pôr descaradamente na gaveta tudo aquilo que torna a vida na Europa em algo minimamente vivível.

(Artur Vieira)

9 de fevereiro de 2006 às 10:56  
Anonymous Anónimo said...

Caro Carlos, concordo plenamente consigo no que diz respeito ao respeito pelos outros.
A fronteira entre aquilo que é ou não é passivel de ser proibido (é proibido proibir... ?) é que é tão ténue, que nos faz a todos, a cada momento, cometer erros. Eu "pessoalmente"(..)não me sinto minimamente ofendida pelo facto de miudos cantarem heróis da merda blablabla... o hino é só um símbolo. Se as nossas crianças acham que os heróis são merdosos, não é por isso que vou desatar a maltratá-los... eles têm todo o direito de se exprimirem verbalmente contra as instituições. Se, por exemplo, os mesmos miúdos desatassem a atirar pedras e a partir a aparelhagem por onde estava a sair o som do hino, nesse caso, apesar de não me passar pela cabeça ir-lhes cortar a cabeça, poderia eventualmente ir apresentar queixa contra os pequenos energumenos... esta é a sociedade onde eu posso viver. Sociedade cheia de extremos, é verdade, onde muitos valores se perderam, é verdade, onde anda meio mundo a enganar o outro meio, é verdade, onde todos insultam todos, é verdade sim, (vejam-se as caixas de comentários de muitos blogues por exemplo) mas por outro lado, onde eu posso, se me apetecer, escrever uma carta aberta ao primeiro ministro ou ao papa a dizer o que penso àcerca da política ou da religião e não é por isso que, no dia seguinte me vão enfiar numa masmorra para toda a eternidade nem a inquisição me vai mandar queimar na fogueira. A raiz do pensamento é livre. A liberdade de expressão é a materialização desse mesmo pensamento. A formação (educação) de cada um de nós é que, evidentemente serve de pilar base a cada sociedade. Onde falta a educação aparecem os extremos. Bem, mas deixemos-nos de abstracções, neste caso dos cartoons, os próprios muçulmanos se encontram divididos( http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/europe/4692318.stm ) disso eu não tenho dúvida nenhuma. Que os extremistas estão a aproveitar a situação, disso eu também não tenho dúvida nenhuma. Cada um está a fazer o seu papel. Não sejamos ingénuos, nem hipócritas. Se aquilo que os cartoons pretendiam demonstrar era que o fundamentalismo islamico é uma doutrina de terror, então acho que atingiram plenamente os seus propósitos. Se o que os cartoons pretendiam era humilhar os muçulmanos, então não me parece que tenham conseguido nada. Humilhação, a meu ver , é ser-se obrigado a pedir desculpas não por realmente acreditar que tenha feito algo de censurável, mas por uma questão meramente diplomática. Na nossa gíria chama-se a isso engolir sapos... Ah o petrólio... o petrólio...
ps/ Segundo os historiadores,o profeta Maomé foi um heróico guerreiro, erótico e sensual e por definição, uma caricatura é o exagero deliberado de certos traços caracteristicos da personalidade do caricaturado. Será que isto é tão difícil de explicar??????????? Não é a sensibilidade religiosa que está em causa. A sensibilidade religiosa está é a ser usada e manipulada. Será que isso é tão difícil de perceber??

9 de fevereiro de 2006 às 12:42  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

No jornal que esteve na origem de toda esta barafunda (e que conseguiu, com 12 bonecos, o que Saladino não conseguiu com muitos anos de guerra!), pode ler-se hoje:

«Nunca, em nenhum momento, tivemos consciência da extrema sensibilidade dos muçulmanos (...) face a esta questão».

9 de fevereiro de 2006 às 14:25  

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