O Previsor de Marés (*)
No Instituto Hidrográfico há um computador mecânico precioso. Em tempos, foi a máquina mais avançada que se conhecia. Hoje é uma relíquia valiosa. Apenas duas dúzias sobrevivem em todo o mundo
QUEM suba a Rua das Trinas, em Lisboa, reparará num edifício antigo, à esquerda, grande mas discreto, onde uma pequena placa revela estarmos no Instituto Hidrográfico. Quem se aproxime da porta verificará tratar-se de um edifício da Marinha. E quem conheça um pouco de geografia ou marinhagem prática saberá que é uma casa indispensável a todos os que tratam de assuntos do mar. Entre as suas funções, conta-se a edição de umas tabelas muito úteis aos marinheiros, tabelas onde se prevê, para os portos principais do país, as alturas e momentos das marés.
Previsor do Instituto Hidrográfico.
É o n.º 5 de uma série construída em Glascow pela empresa Kelvin, Bottomley & Baird Ltd., com 16 componentes harmónicas de marés
Hoje, a tarefa está muito facilitada. A recolha de dados é mais simples, o seu tratamento e arquivo também. Os cálculos de previsão, sobretudo, são facilmente feitos em computador. E os resultados são muito mais precisos do que o eram ainda há algumas décadas.
A previsão de marés tem uma história ilustre. O fenómeno é complexo e demorou a ser percebido. Isaac Newton (1642–1727), com a sua teoria da gravitação universal, foi o primeiro a conseguir explicar as causas das marés, incluindo entre elas não só as posições da Lua como as posições relativas da Lua e do Sol. A sua teoria, contudo, pouco mais explicava do que a periodicidade e variabilidade das marés ao longo do ano. Não era útil para fazer previsões.
Um século depois de Newton, o matemático francês Pierre-Simon Laplace (1749–1827) introduziu a dinâmica dos oceanos na explicação das marés. Mas subsistiam dificuldades. Foi preciso esperar pelo último quartel do século XIX para se começarem a fazer previsões sistemáticas e fiáveis. A grande figura desta proeza foi o físico e matemático William Thomson (1824–1907), mais conhecido como Lorde Kelvin. Era um cientista, mas era também um inventor imaginativo. Tornou-se internacionalmente famoso por conseguir resolver vários problemas teóricos e práticos que em 1866 levaram ao sucesso dos cabos de comunicações transatlânticos.
Para cada harmónica, isto é, componente cíclica das marés, ajustava-se na roda dentada a correspondente amplitude e fase, obtidas a partir da observação do histórico de marés no porto em causa
Kelvin envolvia-se a fundo nestes projectos. Um dia, numa viagem de lançamento de um cabo submarino, ficou retido na Madeira durante duas semanas. Foi na altura que conheceu uma família inglesa aí residente e que se veio a apaixonar por uma das filhas, com quem viria a casar.
Lorde Kelvin abordou o problema da previsão de marés de uma forma prática. Percebeu que as causas astronómicas explicavam a periodicidade dos movimentos das águas, mas que os pesos e desfasamentos dos diversos factores variavam de maneira demasiado complexa para ser explicada fisicamente. Pensou então num processo de analisar o histórico de marés num porto e daí extrair os pesos e desfasamentos desses factores. Depois do estudo do porto em causa, bastava introduzir os factores numa fórmula e projectá-los no futuro.
O processo de Kelvin revelou-se um sucesso e o cientista decidiu construir uma máquina que fizesse automaticamente os cálculos. O que interessava era sobrepor ciclos que reproduzissem as forças de atracção astronómicas (semi-diurno lunar, semi-diurno solar, etc), e calcular o movimento que resultava da combinação de todos eles. Para isso, o cientista imaginou uma série de rodas dentadas que fizessem mover roldanas. Pelas roldanas passaria um fio que somaria as contribuições das diversas componentes. Essa soma representaria o movimento previsto das águas.
Manivela (em baixo à direita), que roda o eixo onde as rodas dentadas vão movimentar as roldanas que transmitem as componentes das marés a um fio.
Na extremidade, o fio movimenta a caneta, que marca as previsões no papel movido pela rotação do tambor
Em 1872, Kelvin imaginou e construiu um protótipo de uma máquina que funcionava de acordo com esses princípios. Em 1876 começou a construir aparelhos sucessivamente mais aperfeiçoados, introduzindo mais e mais componentes. Associou-se numa empresa que se encarregou dessa construção. Os aparelhos de Kelvin espalharam-se pelo mundo.
Eram aparelhos muito caros, contudo. No total construíram-se 25 instrumentos, dos quais um, comprado pelo Japão, foi destruído por um tremor de terra. São pois aparelhos raros e preciosos.
O magnífico exemplar que se encontra no Instituto Hidrográfico foi construído em Glascow em 1924 e comprado pelo governo português. Chegou ao nosso país, foi montado e testado. Em 1925 começou a ser usado para prever as marés portuguesas. Funcionou ininterruptamente durante quatro décadas, até que os meios de cálculo electrónico substituíram os previsores mecânicos.
Encontramos hoje numa ala do Instituto Hidrográfico este distinto representante do engenho do passado. Todas as peças se mantêm no lugar: as engrenagens, as roldanas, os mostradores... Quando se roda a manivela, tudo mexe. As rodas dentadas transmitem o movimento às roldanas, que se sobem e descem deslocando um fio que soma as componentes matemáticas das marés. Na sua extremidade, um tinteiro com um pequeno tubo encosta-se a uma folha de papel. A folha roda num tambor, permitindo a escrita gráfica das previsões. Dir-se-ia que o previsor ainda desenha as marés e que, à noite, o fantasma de Lorde Kelvin ainda por lá aparece, para pôr tudo a trabalhar.
1 Comments:
Mais informação detalhada sobre este assunto aqui:
http://www.bartleby.com/30/16.html
Trata-se de um estudo científico das marés feito por Lorde Kelvin onde também é explicado o funcionamento desta máquina que é para todos os efeitos um computador analógico.
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