22.10.06

Por favor, discutam comigo

EU QUERIA discutir o aborto, mas o que eu queria discutir ninguém quer discutir comigo. É que a metafísica, essa, enterrei-a no referendo de 1998. E fiz uma jura: ninguém me apanha mais a debater o momento em que a vida começa, as piruetas da fecundação, a gravidade da nidação ou a milagrosa formação do sistema nervoso central. Após a gritaria de 98 fiquei para sempre surdo a qualquer tentativa de encontrar respostas científicas para problemas filosóficos. Tornei-me um pragmático: eu tenho cá a minha opinião, gosto muito dela, mas não quero convencer sequer uma mosca da razoabilidade dos meus argumentos. Significa isto que vou votar a favor do aborto até às dez semanas? A resposta deveria ser "sim". Mas, se calhar, vai ser "não".
É que entretanto já foi metido ao barulho, como se fosse um detalhe do domínio da evidência, aquilo que efectivamente me irrita a pituitária e que merecia umas boas doses de conversa: a possibilidade de realizar abortos a pedido em hospitais públicos. O ministro Correia de Campos, sempre solícito, já afirmou que o Sistema Nacional de Saúde está mais do que capacitado para realizar os abortos necessários. Acredito piamente. Só lamento que esteja tão capacitado para realizar abortos e tão pouco capacitado para curar uma simples dor de dentes ou para so-lucionar tantos casos de doentes com cancro que têm de esperar quatro ou cinco meses por uma operação porque não existe vaga para cirurgia.
Isto não é o acessório - isto é o essencial. Estar grávido não é uma doença. E só em casos excepcionais, aliás já previstos na lei em vigor, é que pode ser considerado um problema de saúde. E não o sendo, e havendo centenas de milhares de pessoas que estão efectivamente doentes sem terem da parte dos hospitais públicos a resposta que lhes é devida, é uma obscenidade ocupar salas de cirurgia e tempo médico com interrupções da gravidez. À pergunta do referendo eu votaria "sim". Mas se envolverem equipamentos do Estado no processo a minha resposta será, inevitavelmente, "não".
João Miguel Tavares
«DN» de ontem. [P.H.].

10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Embora eu tencione votar "sim", aqui deixo algumas questões adicionais a que ninguém responde:

1º- As mulheres, actualmente, vão a Espanha abortar.
Só que o fazem ao abrigo de uma lei que é igual à nossa...

O que sucede é que - já cá faltava! - a lei, cá, não é cumprida.

Ora, perante essa lei da treta, o que faz o legislador? Muda a lei, evidentemente...

2º- A descriminalização será só até às 10 semanas.
Uma gravidez tem cerca de 37 semanas.
Continuará, pois, a ser possível prender e julgar quem aborte às 12...

3º-O hábito de recorrer ao aborto não como recurso mas como método anti-conceptivo está divulgado demais, especialmente onde falta educação.
As pessoas têm uma vida sexual sem precauções e depois, se necessário, aborta-se.

4º-Uma dúvida (subjacente ao texto de JMT:

É o SNS que vai pagar os abortos, mesmo os feito como atrás se refere?

E vão passar à frente das listas de espera?

Ed

22 de outubro de 2006 às 15:18  
Anonymous Anónimo said...

Nos casos em que a IVG é usada como método anti-conceptivo (e podia estabelecer-se que a seguir ao 2º aborto, p.ex., já seria esse o caso), não seria justo (aqui, sim!) aplicar uma "taxa moderadora"?

Não era preciso que fosse grande. Bastaria que fosse no valor dos anti-conceptivos que não se pagaram e que o teriam evitado.

22 de outubro de 2006 às 16:01  
Anonymous Anónimo said...

Também tenciono votar SIM, mas reconheço que há muita desonestidade à mistura para que o SIM ganhe.

Ora veja-se as seguintes hipóteses:

I-A maioria vota e o resultado é SIM: ganha o SIM, e muito bem.

II-A maioria abstem-se e o resultado é SIM: ganha o SIM, porque "quem não votou, tivesse votado".

III-A maioria abstem-se e o resultado é NÃO: "não valeu", porque não houve maioria de votantes. O Parlamento tratará de aprovar o SIM

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Só na hipótese, muito pouco provável, de haver maioria de votantes e ganhar o NÃO, é que este vencerá.

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De salientar a curiosa posição do PCP:

Ele acha que deve ser dada a palavra ao povo para coisas simples como a Constituição Europeia, mas negada (para APROVEITAR a actual maioria na AR)em coisas como o aborto, que ninguém sabe o que significa.

Acresce que, se isso vier a suceder, uma maioria diferente na AR poderá, mais tarde, alterar tudo outra vez.

22 de outubro de 2006 às 17:51  
Anonymous Anónimo said...

A táctica do PCP (de "votar aqui ou ali" conforme julga que pode ganhar) pode ser muito "leninista" mas é muito feia.

Serão ensinamentos dos amigos da Coreia do Norte (a tal que, segundo Bernardino, «é duvidoso que não seja uma democracia»)?

22 de outubro de 2006 às 18:47  
Anonymous Anónimo said...

O CDS/PP quer que, na pergunta a referendar, se use a palavra "ABORTO" em vez de "Interrupção voluntária de gravidez" (expressão com sabor a eufemismo de quem tem medo das palavras).

Querendo, na realidade, dizer a mesma coisa, não virá mal ao mundo se se usar a que for mais elucidativa para quem vota.

E olhem que "aborto" não é calão. Vem em qualquer dicionário, e logo no início.

22 de outubro de 2006 às 19:39  
Anonymous Anónimo said...

«Continuará, pois, a ser possível prender e julgar quem aborte às 12...»

Pior: mesmo quem aborte às 11 semanas, com a lei que se prepara já terá problemas.

Curiosamente, há muitos países (julgo q Espanha é um deles) onde o limite são as 12 semanas.

Mas tb estou para ver se as gravidezes vão passar à frente de doentes graves que esperam há eternidades em listas de espera.

O mais certo é que sim, e isso (seja justo ou não) é um problema bem real que não vejo ninguém abordar nem discutir.

Aliás, ninguém quer nem vai discutir nada. Os histéricos e os fundamentalistas vão "histerizar" e "fundamentalizar" até darem cabo da pachorra de todos os outros.

«O nosso corpo é um campo de batalha! Aborto livre e gratuito, já!» - era o teor de uma grande pichagem que existiu em Lisboa, junto ao Hotel Roma. De tão "fracturante", só pode ter sido feita por ordem do Patriarcado!

M.

22 de outubro de 2006 às 22:29  
Anonymous Anónimo said...

Tb vi essa pichagem. Estava num tapume onde agora é o campo de jogos. Era extremamente irritante ver as pessoas a parar e a ler aquilo com ar espantado ou revoltado.De facto, a avaliar pelos resultados, deve ter sido feita por tontos (m/f) ou por defensores do «NÃO»!

E. Ramos

23 de outubro de 2006 às 08:46  
Anonymous Anónimo said...

Se o JMT foi informado que o seu texto/apelo («Por favor, discutam comigo») ia ser aqui afixado (como é costume neste blogue), é suposto que venha ler o que cá se diz - e decerto o faz.

Será que está de acordo com tudo?

23 de outubro de 2006 às 10:30  
Anonymous Anónimo said...

O texto do post está interessante, mas o que mais gostei ainda foi do hiperlink no RH do rodapé!

23 de outubro de 2006 às 12:55  
Anonymous Anónimo said...

Acabei de ver num jornal uma foto de uma barriguinha onde estava escrito, a marcador, "na minha barriga mando eu".

Mas pensemos um pouco, e comparemos esse caso com o das pessoas que dizem que não põem o cinto de segurança, nos carros, alegando o mesmo:

Neste caso, está tudo muito bem enquanto não há um acidente.
A partir do momento em que essa sua liberdade vai obrigar a ambulâncias, hospitais, etc, já não será tão evidente. Ninguém vive isolado do mundo.

Da mesma forma, a senhora da barriga escrita mandará na sua barriga para engravidar ou não engravidar. E também mandará na barriga para abortar.

Tudo bem; o problema é quando depende dos outros para isso.
Nesse caso, já não é só o que ela quer e lhe apetece.
Ou será?

R.

23 de outubro de 2006 às 13:30  

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