17.11.06

UM CRETINO GENIAL

FOI EM JANEIRO de 1972 que li pela primeira vez O bravo soldado Chveik, a obra-prima do escritor checo Jaroslav Hasek (1883-1923). Devorei-a em três dias, quando já só me faltavam três meses para começar a cumprir o serviço militar obrigatório. É fácil de imaginar o efeito que tão perniciosa leitura produziu no meu bestunto. Apresentei-me em Mafra, no quartel dentro do convento, tentando arvorar «uma expressão tão estúpida como a do arquiduque Carlos, herdeiro do trono austríaco». Mas, ao contrário do bravo soldado Chveik, não logrei iludir ninguém. Duramente treinado para defender a pátria e o império, fui rapidamente promovido a oficial miliciano, ao cabo de seis meses. E só a revolução do 25 de Abril, que ocorreu precisamente dois anos depois de eu ter entrado em Mafra, me impediu de conhecer a África, tal como o bravo soldado Chveik desejaria ter conhecido a Rússia durante a Grande Guerra: arriscando a pele, mas de borla.
Não admira que Josef Chveik, o genial personagem criado em 1911 por Jaroslav Hasek, seja considerado uma espécie de herói nacional checo. Rechonchudo e de baixa estatura, o rosto é rubicundo e afável, o sorriso é bem-aventurado e honesto, o olhar é fervoroso e ardente, tão radiante como o de uma criança. O aprumo francamente militar, a imbecilidade aparente e a ingenuidade desarmante aliam-se a um zelo inexcedível e a uma verborreia inesgotável. O valente soldado Chveik é uma autêntica picareta falante que exaspera os seus superiores até à exaustão e assim vai demolindo, pouco a pouco, o edifício da autoridade e da burocracia, com um optimismo irresistível e hilariante.
«Este tipo é um cretino?» - pergunta, às tantas, um coronel ao sargento-ajudante. «Às Vossas ordens, meu coronel, sou um cretino!» - responde o bravo soldado Chveik, antecipando-se ao sargento-ajudante com uma inefável candura. Mas um cretino genial, que sai ileso de todas as catástrofes - tanto as que ele provoca como as que lhe caem em cima - e assim consegue sobreviver à Grande Guerra e à derrocada do Império Austro-Húngaro. Jaroslav Hasek exprime, através de Chveik, o carácter do povo checo e o seu impressionante poder de desagregação. Quem leu as suas aventuras e conhece os checos diz que foi assim que eles deram cabo dos austríacos: «com a força da tenacidade, gota a gota, até ao esgotamento final», transformando a águia imperial num galináceo.
Nada resiste ao humor e ao sarcasmo de Jaroslav Hasek: nem os militares; nem o clero; nem os políticos, sejam eles conformistas ou revolucionários; nem as monarquias; nem as repúblicas; nem os impérios. Fundou o «Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites da Lei», mas foi peremptório: «É totalmente falso que eu tenha sido preso duas vezes. A verdade é que fui preso três vezes!». Quando colaborou na Rússia com os bolcheviques, sobrepôs sempre a ironia à militância e ao discurso oficial da Revolução. Era anarquista e boémio. Não espanta que tenha morrido na mais absoluta miséria.

Adaptado do «DN» (não está online)

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2 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

No mês passado, referiu-se aqui uma edição portuguesa de «O Valente Soldado Chveik»:

http://sorumbatico.blogspot.com/2006/10/com-um-pouco-de-sorte-este-livro.html

No entanto, a letra é minúscula e tem muitas palavras (e frases inteiras) em alemão, que o editor achou que não era necessário traduzir!

17 de novembro de 2006 às 16:41  
Anonymous Anónimo said...

Quem não leu «O Valente Soldado Chveik» não sabe o que perde.

Ed

17 de novembro de 2006 às 22:38  

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