UMA ESPERANÇA INTERROGADA (*)
QUANDO, há algum tempo e em clima de certa euforia, se falou da candidatura da Baixa dita pombalina a património mundial, armei em Velho do Restelo: no jornal onde então escrevia, formulei o desejo de que, antes disso, os lisboetas a considerassem de facto como património seu; só atingido esse indispensável patamar, poderíamos pensar em a impor ao mundo. Baseava-me na experiência própria. Vim de um tempo em que as minhas avós "precisavam urgentemente" de ir à Baixa para comprar um simples carrinho de linhas; vivo numa época em que muito alfacinha comum foge das ruas geométricas do centro citadino como o diabo da cruz, só as procurando quando se torna forçoso tratar de assunto inadiável em ministério, banco ou escritório com sede naquelas paragens.
As razões do abandono têm sido amplamente dissecadas e poupo-me, por isso, a repeti-las. Bastará talvez lembrar que, em termos de segurança, o senhor presidente da Junta de Freguesia de São Nicolau alvitrou há dias, nestas colunas do DN, ser forçosa a instalação de 32 câmaras de vídeo para vigilância das ruas. Chegará, possivelmente, informar que, na semana passada, vários pares de olhos viram, em pleno dia, um sujeito vertendo em boa paz os seus líquidos orgânicos contra a parede do Teatro Nacional, do lado do Largo D. João da Câmara, a escassos metros de uma esquadra de polícia.
Sendo estes os factos, um cidadão - que não é urbanista nem engenheiro nem arquitecto nem coisa nenhuma que vá além de amante fervoroso e, tanto quanto possível, atento da terra onde nasceu e vive - só pode encarar com simpatia um plano sério de revitalização da Baixa. E sentir crescer a esperança quando verifica que a proposta, não reunindo embora a unanimidade, suscitou algum consenso na Câmara e mesmo entre a autarquia e o Governo. Começa, pois, devagarinho, a esboçar-se a pergunta: será desta?
É claro que muitas interrogações acodem logo a seguir, sobretudo a quem já reage nestas coisas como gato escaldado diante da água fria. Assim, 1145 milhões de euros (porque não 1147, que sempre era a data da reconquista da cidade?) parece muita fruta para quem tem os pomares carecas. O regresso dos moradores às zonas hoje entregues aos serviços será feito com que política de rendas? O Terreiro do Paço, mesmo ganhando em comércio digno sob as arcadas, manterá a sua vocação de sede do poder? E deixará de ser pista folclórica? O retorno do mercado à Praça da Figueira não será, quase 60 anos depois da demolição, uma ideia peregrina? Vão desaparecer os acrescentos feitos a martelo em muitos prédios das ruas nobres? O Rossio voltará a ser a nossa sala de convívio, da qual tivemos uma amostra (levada a cabo por estrangeiros) durante o campeonato europeu de futebol?
Estas e muitas outras seriam perguntas do alfacinha comum. De resto, para já, os votos vão para que o plano siga em frente e seja executado por técnicos que, além da competência, possuam uma qualidade pelo menos tão importante como essa: gostem muito de Lisboa.
Por mim, arranjaria uma multidão de clones do Arquitecto Ribeiro Teles.
Appio Sottomayor
(*) Esta crónica, que foi publicada no «DN» de hoje mas não está online, foi disponibilizada ao SORUMBÁTICO pelo seu autor, a quem serão reenviados os eventuais comentários.
As razões do abandono têm sido amplamente dissecadas e poupo-me, por isso, a repeti-las. Bastará talvez lembrar que, em termos de segurança, o senhor presidente da Junta de Freguesia de São Nicolau alvitrou há dias, nestas colunas do DN, ser forçosa a instalação de 32 câmaras de vídeo para vigilância das ruas. Chegará, possivelmente, informar que, na semana passada, vários pares de olhos viram, em pleno dia, um sujeito vertendo em boa paz os seus líquidos orgânicos contra a parede do Teatro Nacional, do lado do Largo D. João da Câmara, a escassos metros de uma esquadra de polícia.
Sendo estes os factos, um cidadão - que não é urbanista nem engenheiro nem arquitecto nem coisa nenhuma que vá além de amante fervoroso e, tanto quanto possível, atento da terra onde nasceu e vive - só pode encarar com simpatia um plano sério de revitalização da Baixa. E sentir crescer a esperança quando verifica que a proposta, não reunindo embora a unanimidade, suscitou algum consenso na Câmara e mesmo entre a autarquia e o Governo. Começa, pois, devagarinho, a esboçar-se a pergunta: será desta?
É claro que muitas interrogações acodem logo a seguir, sobretudo a quem já reage nestas coisas como gato escaldado diante da água fria. Assim, 1145 milhões de euros (porque não 1147, que sempre era a data da reconquista da cidade?) parece muita fruta para quem tem os pomares carecas. O regresso dos moradores às zonas hoje entregues aos serviços será feito com que política de rendas? O Terreiro do Paço, mesmo ganhando em comércio digno sob as arcadas, manterá a sua vocação de sede do poder? E deixará de ser pista folclórica? O retorno do mercado à Praça da Figueira não será, quase 60 anos depois da demolição, uma ideia peregrina? Vão desaparecer os acrescentos feitos a martelo em muitos prédios das ruas nobres? O Rossio voltará a ser a nossa sala de convívio, da qual tivemos uma amostra (levada a cabo por estrangeiros) durante o campeonato europeu de futebol?
Estas e muitas outras seriam perguntas do alfacinha comum. De resto, para já, os votos vão para que o plano siga em frente e seja executado por técnicos que, além da competência, possuam uma qualidade pelo menos tão importante como essa: gostem muito de Lisboa.
Por mim, arranjaria uma multidão de clones do Arquitecto Ribeiro Teles.
Appio Sottomayor
(*) Esta crónica, que foi publicada no «DN» de hoje mas não está online, foi disponibilizada ao SORUMBÁTICO pelo seu autor, a quem serão reenviados os eventuais comentários.
Etiquetas: Appio
3 Comments:
Antes de mais, o problema é que o lisboeta-médio não ama a cidade.
Lisboa está transformada numa selva: porca, desordenada, sem respeito por qualquer lei ou regulamento, cheia de gente egoísta e sem quaisquer laços - quer entre si, quer à cidade.
Apesar de morar em Lisboa há mais de meio-século, dei por mim, nos últimos tempos, a fugir dela sempre que posso!!!!
M.
Folgo muito por ver aqui aparecer Appio Sottomayor, pessoa que muito nos pode ensinar sobre esta cidade tão mal-amada e tão maltratada, quer por quem nela vive, quer por quem nela manda.
Ed
Quem tiver acesso ao «Jornal da Região» (Lisboa), pode saborear as crónicas de Appio Sottomayor sobre a cidade.
A do nº de 7 a 13 Novembro (pág. 13) é sobre a Praça de S. João Bosco e vale bem a pena ser lida.
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