26.12.06

Curta-letragem (©) de Natal (*)

TODO O ANO suportou as piadas dos colegas e as chalaças dos amigotes. Fê-lo em silêncio, com a obstinação surda do ousado, sem se importar do aspecto redondo que os muitos quilos a mais iam tomando no corpo nem da longa barba já branca que o aparente desleixo trouxera. Quando o apanhavam bem disposto defendia-se dizendo que não era gordo, era baixo: com aquele peso todo devia era medir mais um metro, e afastava-se deixando-os a rir-se dele, de tudo nele. A muito custo foi juntando retalhos de pano vermelho, surripiados aqui e além, e esfalfando-se para comprar prendinhas nos chineses. E a maior custo ainda convenceu a costureirinha da cave esquerda a ir cosendo-lhos aos poucos até que o fato completo o obrigou a inventar uma história qualquer. O barrete debruado a branco foi a cereja coroando a tarte que conseguiu arrancar-lhe o sorriso que em meses não se permitira. Onde vais tu, ó Pereira, mascarado de pai natal? Ele sabia muito bem aonde. Salva as crianças e salvas o mundo! Esperou pela noitinha, fria e cravada de estrelas sem vivalma nas ruas, e meteu-se a caminho daquele bairro onde nem a polícia entra no pino do dia. As ricas têm de tudo, as remediadas remedeiam-se com qualquer coisa... agora aquelas! Aquelas crianças não têm nada mesmo, nem a esperança. E nâo há nada mais belo do que o olhar cintilante de uma criança que espera. Parado no meio da rua sinistra, saco ao ombro, olhando os casebres onde adivinhava o palpitar infantil, ganhou a última coragem e começou por ali mesmo, batendo àquela primeira porta. Mas a miséria é desconfiada e fecharam-lha na cara. Na segunda, mais do mesmo. Na terceira houve gritos e quando fugiu da quarta sem conseguir dar uma única prenda viu-se de repente cercado de sombras ameaçadoras saídas do nada. A primeira paulada deitou-o ao chão. A segunda deixou-o inconsciente. E a terceira matou-o. Arrastaram-no então rua fora e atiraram-no pela ravina dos lobos, como um boneco gigante de trapo. Lá em baixo estavam à espera dele os anjos.
(*) Conto de Miguel Viqueira oferecido ao «SORUMBÁTICO»

Etiquetas:

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Abri o The Economist.
"Capitalism can make a society rich and keep it free. Don't ask it to make you happy as well." É o título de 1 artigo que finaliza assim: "To find the market system wanting because it does not bring joy as well as growth is to place too heavy a burden on it. Capitalism can make you well off. And it also leaves you free to be as unhappy as you choose. To ask more of it would be asking to much."
É por isso que este "pai natal"não percebeu o que lhe aconteceu.
As pessoas (deacordo com este texto) têm a liberdade de serem infelizes e/ou pobres com o capitalismo.Pois.

26 de dezembro de 2006 às 18:52  
Anonymous Anónimo said...

Lindo!

26 de dezembro de 2006 às 19:32  
Anonymous Anónimo said...

Ora aqui está um conto "politicamente incorrecto" - algo que faz muita falta, nestes tempos semi-tontos!

Ed

26 de dezembro de 2006 às 22:27  
Anonymous Anónimo said...

Bonito.
Mas só espero que os anjos o ajudassem a "subir" aos céus.
É que nestes tempos semi-tontos ou totalmente-tontos, já não sei de que lado estão os anjos.

26 de dezembro de 2006 às 23:17  
Anonymous Anónimo said...

Este Miguel Viqueira é o mesmo que escreveu o romance "O Sanatório de Cascais"? Se sim, tiro o chapéu ao Sorumbático por receber um dos melhores autores contemporâneos de língua portuguesa.

27 de dezembro de 2006 às 13:28  
Anonymous Anónimo said...

Márcia R.,

Sim, é a mesma pessoa.

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/miguel_viqueira.htm

27 de dezembro de 2006 às 15:24  

Enviar um comentário

<< Home