9.3.07

A «MERDA DO DIABO»

BASTA OBSERVAR O MAPA DE ÁFRICA, fixando o olhar no Golfo da Guiné e nos seus oito Estados ribeirinhos produtores de petróleo - com a Nigéria à cabeça, mas também Angola e São Tomé e Príncipe na lista - para se perceber porque é que, em Washington, esta zona geoestratégica crucial é designada como o «próximo Golfo» - «next Gulf». O volume de reservas de petróleo já recenseadas - a maior parte offshore - é de tal ordem, que o seu inevitável destino é tornar-se a grande alternativa ao Golfo Pérsico. A cobiça dos países do Ocidente, com os EUA à cabeça, só tem paralelo na avidez das chamadas potências emergentes como a China, a Índia e o Brasil, que também já lá estão.

A «maldição do ouro negro» - «merda do diabo», como chamam ao petróleo em África - está bem patente nesse insustentável paradoxo que é a Nigéria. Apesar de ser o primeiro produtor de petróleo africano e o quinto maior produtor mundial, 70 por cento dos seus habitantes vivem com pouco mais de um euro por dia, em bairros de lata onde se amontoam aos milhões, ameaçados pelas emanações tóxicas que provocam doenças respiratórias, pelas constantes fugas de petróleo que devastam zonas agrícolas e zonas piscatórias poluindo a cadeia alimentar, pelo banditismo e a corrupção, pela cupidez dos interesses privados que tomaram conta das instituições públicas. Assim, não espanta que a Nigéria vegete no 159º lugar do ranking de desenvolvimento humano da ONU (entre 177 países) e que a esperança de vida dos nigerianos não ultrapasse os 44 anos.


Hoje, não faltam os estudos que confirmam o forte aumento de guerras civis em países produtores de petróleo, gás natural e diamantes, desde o início da década de 1970 até ao final do século XX. Também o recente filme de Edward Zwick sobre a tragédia da Serra Leoa - Diamante de Sangue - serviu para ilustrar esse «círculo vicioso» que faz mergulhar na pobreza e na desgraça tantos países da África e da Ásia. Alice Sindzingre descreve-o com toda a crueza no Le Monde: «detenção de um recurso natural cobiçado nos países ricos; competição entre “senhores da guerra” para controlar a sua predação e para comprar armas; populações submetidas pelo terror; guerra civil perpétua».


O que hoje os estudos revelam e o cinema põe em evidência, foi objecto, há mais de 20 anos, de um surpreendente romance intitulado Uma Ambição no Deserto, fruto da imaginação, ironia, premonição e talento do escritor egípcio Albert Cossery. O primeiro-ministro de um emirado pobre, pacífico e feliz - por não ter «merda do diabo»! - deseja desempenhar um papel de relevo na cena internacional, atraindo as atenções da «grande potência imperialista». Promove, então, uma frente de libertação fantasma, uma série de atentados à bomba e uma falsa sedição para alarmar os «chacais». A metáfora é perfeita. Os livros de Cossery, todos editados pela Antígona, merecem ser lidos de fio a pavio. A imaginação é fértil, os personagens delirantes, a ironia mordaz e a escrita soberba.
«DN-6ª» - 9 Mar 07
NOTA 1: Por lapso, esta crónica foi publicada (na edição em papel do «DN») com o título da crónica da semana anterior.
NOTA 2: Este texto encontra-se também afixado no blogue «TRAÇO GROSSO» [v. aqui], arquivo das crónicas publicadas pelo autor no «DN-6ª».

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E em Timor onde, aparentemente (??) se passa o mesmo?

Ed

9 de março de 2007 às 12:49  
Anonymous Anónimo said...

Excelente texto!
Este é um problema que vai ser extremamente complicado de resolver.
A ganancia é muita.
Quanto à sugestão, tentarei ler os livros de Cossery pois pelo que descreve devem ser mesmo muito interessantes.

9 de março de 2007 às 15:51  

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