Um ilustre homem de cultura
CORRIA O LONGÍNQUO ANO de … não sei.
Mas a estória é de Salazar, o botas. Verdadeira. No seu apogeu de consulado, temor e influência. No auge do seu crédito mas também do seu deficit cultural, como veremos.
Neste caso, mal ele sabia que, tantos anos depois, viria a ser o maior e mais saudoso português - numa redutora e imbecil selecção - em sede de programa de televisão de muito espalhafato e pouco significado.
Escolha enigmática e controversa? Nem por isso. Por saturação de uma sociedade blindada à iniciativa, onerada nos custos e deficitária em felicidade. A que estamos vivendo.
Mas o tema de hoje não é exactamente esse dirimir. Por isso mesmo, adiante.
Caía a noite em Lisboa. Estava D. Amélia Rey Colaço a vestir-se para a sua actuação no seu Teatro D. Maria II. A grande dama do Teatro português recebe de repente o aviso do porteiro do Teatro de que a comitiva do Senhor Presidente estava à porta, para entrar.
Mas a estória é de Salazar, o botas. Verdadeira. No seu apogeu de consulado, temor e influência. No auge do seu crédito mas também do seu deficit cultural, como veremos.
Neste caso, mal ele sabia que, tantos anos depois, viria a ser o maior e mais saudoso português - numa redutora e imbecil selecção - em sede de programa de televisão de muito espalhafato e pouco significado.
Escolha enigmática e controversa? Nem por isso. Por saturação de uma sociedade blindada à iniciativa, onerada nos custos e deficitária em felicidade. A que estamos vivendo.
Mas o tema de hoje não é exactamente esse dirimir. Por isso mesmo, adiante.
Caía a noite em Lisboa. Estava D. Amélia Rey Colaço a vestir-se para a sua actuação no seu Teatro D. Maria II. A grande dama do Teatro português recebe de repente o aviso do porteiro do Teatro de que a comitiva do Senhor Presidente estava à porta, para entrar.
Assim, sem mais. Nem aviso, nem recado, nem telefonema, que era coisa que teria ficado muito caro ao erário público, está visto.
O Senhor Presidente era ele. Presidente do Conselho. De ministros. Isto é, que se saiba, em toda a parte, Primeiro-ministro. Mas, no nosso caso, era obrigatório usar essa expressão. Apoucante dos Carmonas, Craveiros e Thomazes que se perfilassem no caminho. Afinal de contas o Presidente era Ele – o infindável e eminente Ditador de fala sibilina e melíflua. E a designação não deixava dúvidas, se alguém as tivesse.
D. Amélia, aflitíssima, mandou retardar o início da peça até nova ordem e pensou para si mesma o que se passaria. Afinal o Senhor Professor não era tão pouco interessado assim pelo Teatro e pela Cultura. Vinha ver Shakespeare! Más-línguas!...
Vestiu apressadamente um robe, escondendo o traje de época e, mesmo maquilhada, correu a receber a altíssima e inesperada visita.
A tempo justo. De chapéu preto na mão o Senhor Presidente acabava de desembarcar do carro e entrava no hall do Teatro.
“- Oh Senhor Presidente, pelo amor de Deus! Ninguém nos avisou de nada! Não temos nada preparado! O camarote presidencial nem sequer está varrido, nem limpo como deve ser! Não esperávamos a honra da sua visita! Meu Deus! Meu Deus!” - exclamava a grande dama, abanando a cabeça, seriamente perturbada pela inusitada urgência e os inconvenientes da intromissão. E acrescentou:
“- O Senhor Presidente, desculpe eu estar assim de robe, mas, não sabendo que vinha, estava a preparar-me e a vestir-me para o papel… Mas esteja descansado que eu já mandei atrasar o início da peça, e só começa quando já estiver instalado!!” – acrescentou diplomaticamente.
O cabotino Presidente encolheu-se com aqueles modos jesuíticos e modestos de uma farisaica humildade, rodando o chapéu nas mãos elegantes e finas.
“- Oh minha ilustre Senhora! Eu peço mil perdões pela grosseria. Deveria, com efeito, ter sido informada… mas olhe, não se ponha a fazer limpezas nenhumas, que eu não incomodo nada. Nem sequer vou usar o camarote!
“- Era o que faltava, Senhor Presidente! Já mandei limpar, são dez minutos e Vª Ex.ª está instalado como deve ser! Temos muita honra!” – retorquiu decidida D. Amélia.
“- Nah… minha Senhora… Só quero que me ponha uma cadeira naquela janelinha que dá para a Estação do Rossio, compreende?... Eu só venho ver as marchinhas, sabe? É coisa que eu sempre gostei muito e depois vou para casa, nem interrompa a peça nem nada. Eu saio quando acabar e pronto!”- disse, convicto , para espanto de todos.
Um homem de cultura.
Ainda há quem diga que não.
Etiquetas: PB
5 Comments:
Óh!Mas de muita cultura!?!
Lamentável este texto.
Anónimo,
O texto, em si, seria de facto "lamentável" se fosse uma ficção para amesquinhar o homem.
No entanto, o que acaba por ser "lamentável" é a rábula, pois é 100% verídica.
Era contada, em tempos, por um famoso actor que a ela assistiu.
C.
Atenção. Sou o mero transmissor do episódio que, apesar do seu cabotinismo indelével, acaba por ter alguma graça.
Sei que o ditador está na moda e que posso ter tocado uma corda sensível nos tempos de hoje. Em que tanta coisa essencial se está a esquecer quando se fala de Salazar. Aquele pequeno detalhe da Liberdade, por exemplo...
Mas para quem viveu a repressão e os tempos negros da tortura e do obscurantismo cultural; para quem viveu tudo como era no tempo do "senhor presidente", é até, quanto a mim, uma estória bem leve, ao lado das tantas e tão sinistras que haveria para contar.
E verdadeira. Foi-me partilhada por testemunha directa.
Caro Pedro Barroso,
excelente.Estou a 100% de acordo consigo.
Bem haja
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