17.5.07

Um banho duplamente suspeito

Por Carlos Barroco Esperança
O COSTINHA FREQUENTAVA O ÚLTIMO ANO DE DIREITO e o Café Nova York quando as desavenças com o pai, emigrante em França, interromperam as relações e a mesada. Chamávamos-lhe Costinha para o distinguir do Sr. Costa, muito mais velho e robusto, que também frequentava o Café e mantinha relações com o grupo onde o primeiro se integrava.
Se a memória não me falha, foi em 1970 que as refeições na cantina da Cidade Universitária ficaram comprometidas e a espada de Dâmocles ficou pendente sobre a cabeça do Costinha, inquilino de um quarto arrendado e em risco de perder o tecto por falta de meios de pagamento.
Hoje andará a judiciar pelo Supremo ou em alguma das Relações, bem na vida com o pecúlio de magistrado em fim de carreira; mas foi difícil aquele ano e os tempos que se seguiram até ao primeiro ordenado de agente do Ministério Público.
Era de excelentes contas e a nota de vinte escudos pedida de empréstimo a um amigo era devolvida na data prometida com uma dignidade pessoal que o impedia de aceitar o perdão da dívida. Os amigos não adivinhavam as dificuldades da sobrevivência com tamanha lisura de contas.
Soubemos que teve vários empregos precários para assegurar a subsistência, mas apenas de um conhecemos as circunstâncias porque o Cândido, amigo comum e advogado recente, tinha uma pequena avença na empresa que colocou o Costinha e logo o despediu, tão breve quanto o admitira. Foram os patrões que lhe contaram a história do despedimento de um trabalhador e das suas características, sem que o jovem advogado acusasse ser colega e amigo da vítima.
O Costinha, na sequência de um anúncio, começou a trabalhar no armazém de uma empresa de shortcakes, na margem esquerda do Tejo. Era uma unidade de média dimensão onde o lombo dos trabalhadores adiava a entrada de modernas empilhadoras.
O finalista de Direito tinha dado como habilitações a 4.ª classe e atirou-se ao trabalho sem temer a concorrência de costados mais afeitos ao peso, ao pó e ao ritmo.
Não teve tempo nem jeito para fazer amigos. Logo no primeiro dia foi olhado com suspeição por ter pronunciado «xortqueiques» referindo-se ao que sempre fora designado por «xortcáques». Olhado de soslaio, apurada a ida de Lisboa, prontamente acentuou a desconfiança e atraiu a antipatia dos colegas da outra margem, enquanto se ia adaptando às caixas. Mas foi no fim da jornada que uma imprudência maior pareceu confirmar as piores suspeitas dos colegas. O Costa arrancou para o duche antes de abandonar o local de trabalho e usou um dos chuveiros que a entidade patronal tinha instalado, por imposição legal, mas que os hábitos dos colegas tinham tornado supérfluos.
No dia seguinte, o segundo no emprego, voltou a alombar caixas para as viaturas estacionadas, à espera. Pouco tempo depois alguém se lhe dirigiu para lhe comunicar que «o gerente chama o Sr. Costa ao gabinete».
Mandou-o sentar e, de chofre, disse-lhe: o senhor tem mais do que a 4.ª classe – e ele anuiu; tem o 2.º ano do liceu – e ele confirmou; e o 5.º – e o Costa acenou que sim. Prosseguindo, em breve o gerente confirmou que o novo operário era estudante de Direito, um curso que era o sustentáculo do regime e gozava de particular prestígio. Tirou as suas conclusões, chamou uma empregada, mandou que lhe processassem dois dias de trabalho e anunciou-lhe o despedimento.
Enquanto não chegou o pagamento, talvez por respeito ao prestigiado curso de Direito, sempre lhe foi dizendo que os trabalhadores estavam convencidos de que o novo colega era da PIDE e ele não gostaria que lhe caíssem caixas na cabeça, além da desgraça era o prejuízo da mercadoria perdida, mas, cá para mim – disse o gerente – o senhor é do Partido Comunista e vem fazer a subversão. Não queremos cá gente dessa, passe bem, enquanto lhe indicava a porta de saída, sem aperto de mão – que a um comunista não se aperta a mão, consideraria o gerente –, logo que a funcionária da tesouraria lhe estendeu uma nota de cem e outra de vinte escudos, referentes a dois dias de trabalho.
«Jornal do Fundão» de 17 Mai 07

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