Curtas-letragens
Férias
Por Miguel Viqueira
O BOM DO PRAXEDES arrematou duas assoalhadas lá para as bandas da costa sul alentejana e pôde enfim cumprir um sonho de muitos anos, férias de praia com a família toda. Lá foram os Praxedes no boguinhas de quarta mão, a patroa, a sogra, os putos, o tareco, o bobi e o pobre do periquito, a morrer de calor na sombra da gaiola.
Descer a falésia com o pessoal todo, a lancheira, o chapéu, as cadeiras, a bola e os baldes, o jornal e o bobi aos pinotes por ali abaixo, não foi nem fácil nem agradável. Mas quando chegaram àquela enseada paradisíaca, sem vivalma, que nem de encomenda para eles, aquele mar azul e transparente só para eles, o Praxedes ia desmaiando de puro gozo, oh maravilha, isto sim é vida! Praia e mar, mar e praia, sandochas, bejecas, bola e correrias e mais praia e mar, e o sol na pele morena e o regresso estafado à tardinha para se deixarem cair na cama.
Ao terceiro dia de paraíso na praia repararam que a sogra estava na mesma posição desde manhã. Ficara a olhar para o mar como se só ela o visse. Concluíram não sem desespero que a desgraçada se tinha finado ali mesmo. Depois de muito pranto e muito susto e muita dor, içá-la pela falésia acima, mais toda a parafernália costumeira, foi certamente um dos trabalhos de Hércules, mas o bom do Praxedes nunca saberia o que isso era. Pensaram – bem - que de nada lhes valia procurarem um hospital, esperar horas a fio para lhes certificarem o que já sabiam, mais depois um ror de papelada para a transladação e sem falar dos custos... O melhor era levá-la para a casita e amanhã, a todos os títulos infelizmente, regressariam a Lisboa pela fresquinha com a sogra morta.
Mas quem era capaz de levantar a sogra e dobrá-la sequer para a meter no carro no amanhecer seguinte, rígida como uma placa de betão? A patroa chorava desconsolada, os putos olhavam com medo, o Praxedes praguejava, até que improvisou um expediente dos seus. Procurou os ciganos da vila vizinha e comprou-lhes 3 x 2 metros de alcatifa. Só tinham da cara, paciência! Enrolaram a velha muito bem enroladinha, com muito cuidado para não ficarem de fora cabelos nem chinelos, ataram bem com cordéis, puseram o rolo no tejadilho e levantaram enfim o acampamento de férias. Para não atrair as atenções foram pela estrada antiga, devagarinho e cumprindo o código à risca. Os putos acabaram por impor a paragem numa venda para fazer xixi, já agora bebe-se uma bejeca e esticam-se as pernas, salvo seja!
De volta ao carro estacaram todos a olhar para ele, mãos na cabeça: o rolo da defunta sogra tinha desaparecido! Então foi o pranto desatado e as maldições sem temperança até que o sempre bom do Praxedes teve a intuição da sua vida: não longe dali havia uma pequena ravina e se os ladrões não fossem completamente estúpidos lá haveria de estar o embrulho... Todos a uma procuraram, e lá estava mesmo, desatado, assomando um tufo dos cabelos da morta.
Até Lisboa não pararam mais. Já bem de noite, no silêncio do quarto o Praxedes não dormia e tinha os olhos fixos no tecto. Amanhã o médico certificaria a defunção ocorrida durante o sono... Afinal tudo se compunha... Ah! nada como estar de regresso a casa!
Etiquetas: MV
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:)
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