O MORDOMO
O OLHAR NÃO SE FIXA EM NADA e raramente é possível encontrá-lo. Vagueia pelas pessoas, ao nível do peito, escorre pelos móveis, não se detém num único objecto. Fala impessoalmente, como se se tratasse de coisas que interessam a todos em geral menos a quem as diz, que resta distante, cumprindo uma formalidade ou sujeitando-se a uma obrigação.
Um agradecimento não encontra qualquer aviso de recepção. Parece desconhecer pró-formas como «não tem de quê», «ora essa», «por amor de Deus». E como se outra coisa não se pudesse esperar, sendo o agradecimento muito mais correspondido por um registo de crédito do que por qualquer outra coisa.
Indispensável a qualquer hóspede de passagem, ou visitante breve daquela residência que serve há trinta anos, aquela figura austera e amaneirada, esguia e escorregadia, sempre que possível hostil, constituiu-se numa ameaça permanente e, simultaneamente, numa aliança indispensável.
A verdade é que se pensa sempre, pelo menos, duas vezes, antes de recorrer aos serviços daquele mordomo, seja para o que for.
Sorriso é substantivo que traduz um estado de espírito que nunca ninguém se recorda de lhe encontrar, nem jamais foi confundido com o esgar de superioridade que nunca se esquece de assumir, arrogante e impiedoso, olimpicamente displicente, como quem se encontra em posição de onde se não pode perdoar.
Sorriso é substantivo que traduz um estado de espírito que nunca ninguém se recorda de lhe encontrar, nem jamais foi confundido com o esgar de superioridade que nunca se esquece de assumir, arrogante e impiedoso, olimpicamente displicente, como quem se encontra em posição de onde se não pode perdoar.
Há três décadas que serve embaixadores que passam, com os seus móveis, as suas fotografias, os seus quadros, as suas famílias, por aquela bela casa de elegante avenida de uma das mais importantes capitais da Europa. Sabe que os embaixadores passam, e que ele fica.
Por vezes os embaixadores voltam, de visita ou de regresso, e sempre ali o encontram, na mesma postura, à mesma distância, sem um frémito, cortês tanto quanto mandam as regras, mas mais nada do que isso, pronto para o que for possível ou para os seus convenientes esquecimentos, movendo-se e falando o mínimo indispensável. Dir-se-ia que sempre atento; diria eu que nunca venerador e muito menos obrigado.
Embaixadores são, em regra, homens de servir. Servem os que estão hoje, depois de terem servido quem esteve e antes de servir quem vai estar. Não é este parágrafo uma crítica. Apenas se trata de uma constatação sem a qual não seria fácil estabelecer raízes ou razões no comportamento do mordomo. Também ele sabe que essas são as regras dos seus temporários senhores. Também ele sabe, como os seus amos passageiros, que, afinal, patrão é apenas um: o Estado e mais nenhum.
E o Estado nunca o mordomo ofenderá, ao contrário de alguns embaixadores mais dados aos fogos-fátuos das paixões políticas e menos açaimados que não possam, quando a oportunidade se lhes depara, morder a mão que os alimenta.
Mas o mordomo fascina-me. Já vai para quatro embaixadores que nos conhecemos, se o tempo assim se pode medir, e nunca nele encontrei o mínimo deslize à caracterização que procurei fazer nos primeiros parágrafos deste texto.
No entanto, um destes meus amigos embaixadores contou-me uma história que penso que nos proíbe de admitir quaisquer deslizes, muito menos dislates, no futuro deste nosso querido mordomo, servidor estrangeiro do nosso Estado apenas no que respeita a ménage já se vê.
Ocorreu o episódio quando a Europa olhava para Portugal como uma república popular e pensava que as suas embaixadas seriam perigosos antros disseminadores do marxismo-leninismo. Houve, então, uma manifestação da extrema-direita que passou diante do portão da embaixada, assinalada por reluzente placa de latão na elegante avenida onde se encontra.
Ocorreu o episódio quando a Europa olhava para Portugal como uma república popular e pensava que as suas embaixadas seriam perigosos antros disseminadores do marxismo-leninismo. Houve, então, uma manifestação da extrema-direita que passou diante do portão da embaixada, assinalada por reluzente placa de latão na elegante avenida onde se encontra.
O mordomo, ao que me diz o meu amigo embaixador, pelo que lhe iria na cabeça, e no coração, possivelmente lamentaria no seu íntimo a impossibilidade de se incorporar na manifestação - tanto mais que, ao que dizem as más-línguas, é ele dado a jovens viris, fora das horas de serviço, é bom de ver. Possivelmente foi em alvoroço que cumpriu a ordem do embaixador:
- Vá lá baixo e certifique-se de que o portão está bem fechado e os carros cá dentro.
Ao se encontrar junto às grades, um pequeno grupo de manifestantes que saiu do corpo central do cortejo gritou palavras antiportuguesas e anticomunistas, ao mesmo tempo que ofendia gravemente a dignidade do seu compatriota, que tomavam por português.
Diz o meu amigo embaixador que nem nessa ocasião algo de humano aconteceu, saiu de dentro daquela figura esguia e negra. Conta-me o embaixador – que a tudo assistiu protegido pelas venezianas duma das janelas do rés-do-chão – que nem uma palavra, gesto ou sorriso aquele homem libertou.
E só se apercebeu de como os impropérios tanto tinham magoado afinal um correligionário de quem os proferiu quando finalmente o encontrou, nas águas-furtadas, penteando repetidamente o galgo afegã da filha do embaixador, com os óculos embaciados e as lágrimas a correrem-lhe pela cara.
Lisboa, 1987
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