14.8.07

UM BEIJINHO NA BOCHECHA DO CICLISTA VENCEDOR

Por João Miguel Tavares
EU NÃO SOU PROPRIAMENTE adepto do feminismo furioso - Deus me livre -, mas alguma lei da República deveria proibir o que se passa nos pódios da Volta a Portugal em bicicleta. Aquelas duas meninas que afinfam, em perfeita sincronia, uma beijoca nas bochechas do ciclista vencedor no final de cada etapa são uma das mais vergonhosas manifestações de machismo lusitano que por aí se encontram - e, no entanto, a cerimónia permanece imutável de ano para ano, sem que se escute um pio de quem está sempre tão disponível para queimar sutiãs na praça. Ó mulheres portuguesas, onde andam vocês que não vos ouço?
Pensem comigo. Logo à partida, o ciclista é o tipo menos sexy que se consegue encontrar nos desportos do mundo inteiro, talvez com a excepção dos praticantes de sumo. Ganha o mais ridículo dos bronzeados a pedalar horas a fio (nos braços parece um nadador-salvador no fim do Verão e no tronco um turista finlandês acabado de chegar à praia); veste uns calções colantes que ficariam miseravelmente até em Brad Pitt; nos dias de aperto é obrigado a despachar as suas necessidades pelo caminho; e quando salta da bicicleta nem sequer consegue fechar as pernas. Ainda assim, este triste exemplar da espécie humana, a cheirar como nos dispensamos sequer de imaginar, só porque a roda da frente da sua bicicleta se antecipou à concorrência, lá tem de se deixar oscular em palco por duas moças bem parecidas, de sorriso comprado e a disfarçar o embaraço.
O significado daquela encenação é muito simples: o macho-alfa, que se destacou da manada, é agraciado com duas fêmeas em idade reprodutora, para simbolicamente ir rebolar num atrelado, de forma a garantir a continuidade da espécie. Exagero na linguagem? Ponham uma bolinha vermelha no canto da página. Porque aquilo que eu escrevi é exactamente a mensagem (ia dizer subliminar, mas qual subliminar...) que é atirada à cabeça de quem assiste a tão triste celebração.
Imagino que o ciclismo seja um dos últimos resquícios de um velho Portugal, onde o macho surge no seu esplendor. Imagino que aquela cerimónia, que nem sequer é exclusiva do rectângulo, se repita há décadas. Mas não percebo como é que alguém, em pleno século XXI, ainda pode aceitar que duas mulheres subam a um palco exclusivamente para beijar um marmanjo que nunca viram, num ritual deprimente de humilhação sexual. Que esse gesto pareça insignificante é apenas mais um sintoma de que continuamos a desvalorizar o papel da mulher e nos conformamos à sua exibição pública como objecto de uso. Um corpo que passa, beija e rapidamente sai de cena.
«DN» de 14 de Agosto de 2007- [PH]

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11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não é só no ciclismo. Nos desportos motorizados elas andam também para lá com bandeiras e a dar beijos aos pilotos.

14 de agosto de 2007 às 14:59  
Anonymous Anónimo said...

Como diz o outro, não há almoços grátis; elas são contratadas para desempenhar essa função.
Obviamente.

14 de agosto de 2007 às 16:00  
Anonymous Anónimo said...

Claro que são contratadas para desempenhar essa função.

A questão que JMT coloca é, precisamente, "como é que isso, nos tempos que correm, ainda se aceita como coisa natural".

Duarte R.

14 de agosto de 2007 às 16:10  
Blogger Paulo said...

De facto, em muitas modalidades desportivas, usa-se a mulher para chamar mais público.
Já agora, no ciclismo, os vencedores também cumprimentam uns senhores (políticos, autarcas, etc.) que também não conhecem. Será que isso representa a desvalorização do papel desses senhores?

14 de agosto de 2007 às 18:27  
Blogger gisela cañamero said...

O cronista tem razão.É, no mínimo, surpreendente. Tem havido sempre uma tentativa de associar aos desportos com homens umas "boazonas" de enfeite - emprestando um cariz sexual ao domínio (másculo, energético, possante) desportivo.

Mas que se continue a propagar esta ideia culturalmente abjecta é, de todo, fora deste tempo.

... ou não será?...

14 de agosto de 2007 às 23:14  
Anonymous Anónimo said...

Nao percebo qual e o problema, e mais outra maneira de marketing.
Alem disso nao me parece que as mulheres estajam a ser humilhadas, ate parecem la estar de boa vontade...

15 de agosto de 2007 às 12:52  
Anonymous Anónimo said...

Claro que "não há problema nenhum".

Mulheres bonitas que, em troca de dinheiro, dão, de boa vontade, beijinhos a homens que não escolhem, há aos milhares em Portugal. Basta ver os anúncios classificados dos jornais.

Trata-se de uma profissão que até tem vários nomes: massagistas, acompanhantes... - entre outros, mais explícitos.

15 de agosto de 2007 às 13:26  
Anonymous Anónimo said...

Há muito que se entrou na fase da verbosidade corporal, que galopa a ritmo despido.
O Efeito de Halo está mais presente que nunca (idilicamente, porque a realidade é outra), e cada vez mais o sonho de muitas crianças e adolescentes é entrar na novela da fruta doce ou ser capa de revista, nem que tenham que escrever umas quantas cartas ao Pai Natal e pedirem uns implantes mamários como prémio de passagem de ano.
Depois, com o desemprego que há, nada como aceitar ser promotora de eventos.

16 de agosto de 2007 às 01:29  
Anonymous Anónimo said...

"beijinhos a homens que não escolhem"

Acho so dao um beijinho, parece-me que tudo bastante inofensivo.

16 de agosto de 2007 às 08:58  
Anonymous Anónimo said...

Claro que o facto, em si mesmo, não tem mal nenhum e é 100% inofensivo.

JMT apenas fez luz sobre o simbolismo do fenómeno (e, já agora, sobre o facto de o acharmos "normal" numa época em que tanto se fala - e bem - da dignidade da mulher, etc & tal):

«Fêmeas apetitosas são 'compradas' para serem oferecidas como prémio ao macho ganhador».

É um resquício de hábitos ancestrais, e que estão tão arreigados na nossa mentalidade que (como JMT faz notar) nem as feministas refilam.

16 de agosto de 2007 às 09:12  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

JMT pegou num assunto do dia-a-dia, raspou-lhe a superfície, viu um pouco mais do que as aparências mostram e, em linguagem directa e clara, expôs o assunto. Fez, assim, exactamente o que se espera de um cronista.

A partir daí, tudo depende da capacidade de cada leitor de ver "um pouco mais longe" e "um pouco mais fundo" do que a superfície das coisas.

16 de agosto de 2007 às 11:34  

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