13.8.07

O Sacristão de São Paulo

Por Alice Vieira
HOJE VOU CONTAR uma história.
A história de um homem que era sacristão na igreja de São Paulo, em Londres.
Um dia, por motivos burocráticos, foi-lhe pedido que assinasse um documento e, para espanto de todos, o sacristão assinou de cruz. Para espanto de todos, o sacristão não sabia ler nem escrever.
Um sacristão da Igreja de São Paulo analfabeto era coisa inadmissível — e ele foi despedido.
Abatido, sem saber o que fazer à vida, andou o pobre homem ali pelas imediações quando lhe apeteceu, desesperadamente, um cigarro. (Isto passa-se ainda na era do pré- fundamentalismo anti-tabágico...). Olhou em volta, mas não viu por ali nenhum lugar onde pudesse comprá-lo.
Andou mais um pouco — e nada.
“Se calhar era boa ideia abrir aqui uma pequena tabacaria”, pensou.
E, com algum dinheiro que tinha guardado e outro que pediu emprestado, foi o que fez.
A tabacaria foi um sucesso.
De tal maneira que, logo a seguir, abriu outra.
E depois mais outra.
E mais outra, e mais outra — e, algum tempo depois, tinha-se transformado no dono de uma rede de lojas espalhadas pelo país.
Um dia o director do banco chamou-o. Queria conhecer pessoalmente aquele cliente tão importante e, ao mesmo tempo, propor-lhe que diversificasse o investimento, que não tivesse dinheiro parado, etc.
A coisa ia no bom caminho quando, de repente, ao ver o seu cliente assinar de cruz os documentos, o director fez um enorme ar de espanto e nem queria acreditar que estava diante de um analfabeto.
“O senhor não sabe ler nem escrever? Espantoso! O senhor é hoje o que é, com toda esta fortuna, sem saber ler nem escrever! Já pensou no que seria, se tivesse estudado?” “Já”, respondeu o homem, “seria sacristão da igreja de São Paulo”
Quero dedicar esta história (magnificamente contada por Somerset Maugham num dos seus livros de “short stories”) à mente iluminada que engendrou aqueles cartazes publicitários dos fulanos que não terminaram os estudos. A ideia de que o saber é muito bonito é, evidentemente, uma ideia louvável — mas não é achincalhando os outros que ela se defende. Gostava de saber como viveríamos se não houvesse quem recolhesse o lixo, ou engomasse a roupa, ou nos atendesse num restaurante, ou, ou, ou... (E já agora — o que não dariam muitos doutores, de curso acabado e sem emprego à vista, por um lugarzito de porteiro?)

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eis como uma história velha (a própria Alice honestamente revela a sua fonte) pode transformar-se numa crónica fresca,certeira e primorosamente escrita.

13 de agosto de 2007 às 12:08  
Blogger bananoide said...

Pois é... conheço trolhas que ganham bem mais que licenciados bem empregados... Já para não falar dos que não têm emprego.

E no entanto, todos queremos que o grau de literacia aumente. Escusam é de fazer pouco dos que não puderam ou quiseram acabar os estudos.

Acerca deste mesmo assunto, vejam a crónica de Ferreira Fernandes no DN de 03/05/2007:

http://dn.sapo.pt/2007/05/03/opiniao/o_publicitario_estudou_o_suficiente.html

13 de agosto de 2007 às 17:57  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Dado o seu interesse, aqui fica a crónica referida, de Ferreira Fernandes no DN de 03/05/2007:

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O PUBLICITÁRIO NÃO ESTUDOU O SUFICIENTE?

A ideia era boa: lembrar que estudar é bom. Pegou-se em pessoas conhecidas e mostrou-se o que seriam se não fossem os estudos. O treinador Carlos Queirós varria estádios. A jornalista Judite de Sousa estaria atrás do balcão de um quiosque...

Ontem, o ministro do Trabalho, Vieira da Silva, disse à TSF que está satisfeito com a campanha. Ele próprio, digo eu, se não tivesse estudado, poderia estar a colar cartazes do Programa Novas Oportunidades. E, se tivesse passado por isso, perceberia que a boa ideia tinha algo de errado: Vieira da Silva, colador de cartazes, vendo-se humilhado por ser colador de cartazes... Como a senhora do quiosque que se viu como uma sub-Judite de Sousa.

Conheço, por o ler, um tipo de um quiosque que não é sub de todo. Ele tem um blogue, a que chamou "Ardinário", é imaginativo e produtivo. Num país com maus doutores a mais e bons canalizadores a menos era bom que se soubesse fazer comparações que não ofendessem.

13 de agosto de 2007 às 19:53  

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