27.8.07

UMA HISTÓRIA DE MONSTROS

Por Alice Vieira
NOS TEMPOS PRÉ-HISTÓRICOS em que andei no liceu Filipa de Lencastre, tive uma professora de Física, chamada Adelaide Graça, que nos tratava a todas por “monstros”. “Ó meu monstro, então tu não vês que isso é um disparate?” “Anda cá, meu monstro, que fizeste um óptimo trabalho!”
Às vezes levava o requinte ao ponto de nos dar leves palmadas nas mãos com o ponteiro. E o que nós gostávamos dela! E como aquele "monstro” nos aquecia o coração! E como aquele ponteiro sobre os nossos dedos era a mais doce das festas!
Quando lhe cabia a missão de vigiar exames ou de fazer orais, lá vinha o “monstro” para nos fazer sentir à vontade: "vá lá, meus monstros, que só têm mais um quarto de hora!”, “ó meu monstro, eu sei que tu sabes, ora pensa lá bem!”. E aquilo era o suficiente para nos tranquilizar.
E o exame corria muito melhor.
Pensei hoje muito na minha velha professora ao ler no jornal as indicações precisas e rigorosas que o Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação dá aos professores que vão vigiar os testes de aferição a Português e Matemática dos 4.º e 6.º anos e que, como se sabe, não servem para nada.
Então parece que os pobres professores têm de se colocar diante das criancinhas e lerem (o documento diz que não devem decorar as palavras mas sim lê-las) uma mensagem que o ME preparou, e que vai ao ponto de estabelecer até a saudação final, a saber, “podem sair e obrigado pela vossa colaboração.” (Espero, ao menos, que se se tratar de uma professora, ela tenha a liberdade de poder dizer “obrigada” em vez de “obrigado”).
Nem uma palavrinha de conforto, nem uma graça, nada.
O professor será uma máquina a que nem sequer é necessário meter moeda para debitar um discurso standardizado.
Palavra que não sei se hei-de rir até às lágrimas, se hei-de chorar até ficar de olhos inchados.
E morro de pena destas crianças tratadas tão friamente, como se não fossem mais do que números que hão-de servir depois para estatísticas, que por sua vez hão-de servir depois não sei para quê. Para avaliar professores? Para avaliar programas? Como dizia há muitos anos uma personagem de telenovela brasileira, “mistéééério”!
Cada vez me convenço mais que o que faz falta às nossas crianças são vozes a chamarem-lhes, afectuosamente, “monstros” – em vez desta linguagem asséptica, tecnocrática, politicamente correctíssima, mas incapaz de chegar onde é preciso.
Mas se calhar o mal vem de as pessoas que escrevem estas coisas nunca terem tido uma professora como a Dra. Adelaide Graça.
De quem, à distância de meio século, ainda sinto muitas saudades.
«JN» de 27 de Maio de 2007

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Como a compreendo. Também tive, no Liceu de Évora e também rondando os 50 anos, um professor de Matemática que nos tratava por "pedaços de asno", "batia-nos", "insultava-nos" e tinha uma Alma do TAMANHO DO MUNDO. O que nós fazíamos para que nos "batesse" ou "insultasse" pois em todas as suas atitudes sentíamos carinho e amizade. De seu nome ALBERTO MIRANDA,que saudade.
Salvador Silva

27 de agosto de 2007 às 22:23  
Anonymous Anónimo said...

A situação em que os docentes se encontram hoje em dia não é nada fácil. Não quero dizer que isso seja desculpa para não existir uma boa interacção entre os alunos e professores. Mas sem que se queira todas as alterações e instabilidades que surgiram fazem com que os professores acabem por leccionar da forma menos correcta. Também não existem laços, não há oportunidade nem tempo util para tal. Estão sempre na inconstancia de mudar para outra escola ou mesmo não leccionar.
Forma-se uma bola de neve.
Ou seja, neste momento os docentes universitários são assim e o que ensinam aos futuros docentes não é de certeza os pontos mais importantes mas sim os que estão nos manuais.
Esperemos que a situação mude rapidamente.

28 de agosto de 2007 às 17:21  

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