3.9.07

Eduardo

Por Alice Vieira
HÁ POUCO TEMPO deste o meu nome a uma crónica tua. Nunca pensei retribuir-te o gesto tão cedo, e pelos motivos mais tristes de todos.
E confesso que hesitei em escrever-te. O que se diz, quando não há palavras para dizer aquilo que verdadeiramente se quer dizer?
O que se diz, quando todos já disseram tudo. Ou pelo menos tudo o que é importante que seja dito.
Mas se me resolvo, apesar de tudo, a dedicar-te esta crónica, é exactamente porque nada daquilo que te quero dizer é importante.
O que te quero dizer não diz respeito ao teu trabalho na literatura, na crítica literária, nos jornais, no Ensino, não diz respeito a nenhuma dessas coisas sérias que já todas as pessoas sérias evocaram a teu respeito.
Diz respeito apenas a um amigo que eu tinha e já não tenho.
Diz respeito a um tempo que os mais novos nem sonham que existiu, em que todos tínhamos a certeza, mas a certeza absoluta, de que íamos salvar o mundo. E o mundo podia salvar-se em qualquer sítio, até mesmo no bar de Letras, onde a menina Manuela nos servia as bicas quando chegávamos de manhã e ainda havia pouca gente, quase só nós os dois e o João Camilo lá ao fundo, a descascar laranjas, com os olhos verdes a tornarem-se cinzentos nos dias de chuva, e depois o Jorge, e o João Miguel, e o Joaquim, e a Eduarda, e a São, e a Lina e todos, todos os que faziam daquele lugar a sua casa.
E o mundo também se podia salvar dentro do meu carro, onde todos cabiam sempre há uma fotografia em que somos dez lá dentro, e o pior é que eu olho para essa fotografia e desses dez já restam poucos, o carro já não existe também, evidentemente, e só me lembro de lá dentro discutirmos muito os nomes das heroínas dos livros do Abelaira.
E o mundo também se podia salvar com as encomendas de pastéis de nata que te mandávamos para Aix, quando para lá foste com uma bolsa e nos escrevias cartas dizendo que era das coisas de que mais sentias a falta.
E depois um dia nasceu a Alexandra, eu a olhá-la no berço e tu a dizeres-me que estavas muito feliz porque ela tinha nascido no dia em que tinha começado o PBX (que foi um grande programa de rádio!), as coisas tolas que guardamos na memória, santo Deus.
E depois a minha vida complicou-se muito, e tu acompanhaste-me sempre daquela maneira única que os amigos têm de nos dizer que estão connosco de longe, sem te intrometeres, sem me dares conselhos, sem me julgares.
Fizemos depois a nossa vida por lugares diferentes, até que recentemente desaguávamos aos sábados no mesmo café. E um dia tu disseste "Tenho uma doença com nome estrangeiro e quando a gente começa a ter doenças com nomes estrangeiros é muito mau sinal".
E ainda nos rimos.
Agora leio nos jornais o que escreveram a teu respeito. Há quem diga que lhe vai fazer falta o professor, há quem diga que lhe vai fazer falta o cronista do "Público". Desculpa lá, mas a mim o que mais falta me faz é a memória de mim que levaste contigo.
«JN» de 2 de Setembro de 2007

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Excelente homenagem!
Bem haja!

3 de setembro de 2007 às 12:01  
Blogger R. da Cunha said...

Eu, que apenas privei com EPC no Público, vou sentir a sua falta.
Desde os textos mais elaborados, até aos das suas passagens pelo hospital ou, até, com a crónica sobre a regularização dos papeis da sua empregada bralileira (não esquecendo o célebre orgasmo vertical), tudo isso vai fazer muita, muita falta. O que não será para os amigos que agora deixou!

3 de setembro de 2007 às 21:42  

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