16.9.07

OS DIAS DO JUÍZO

Por Nuno Brederode Santos
O FUTEBOL tocou-me mais as canelas do que a alma. Na idade própria, é claro. Mas também ver jogar os outros nunca me arrebatou. Destes dois factos decorrerá porventura uma limitação no meu juízo, mas não me proíbe de o fazer.
Não vi o Portugal-Sérvia. Vi apenas (e ad nauseam) as imagens dos jornais televisivos. No essencial, vi que o murro, genuíno mas preguiçoso, de Scolari no sérvio, frustrou-se - na mesmíssima medida da vitória portuguesa. E vi depois as imagens de uma conferência de imprensa onde o seleccionador de Portugal alardeou tensão nervosa, sobranceria e um ego que não aguenta questionar-se. Tudo isto me fez impressão - uma péssima impressão - por se tratar de alguém que dá a cara por todos nós. Num desporto universal onde justamente somos considerados mais do que aquilo que de nós era exigível.
Acontece também que Scolari parece ter feito bastante por aquilo que agora ajudou a estragar. Do fundo da minha ignorância, ouso pensar que ser vice-campeão europeu não é o estatuto normalmente expectável para Portugal.
Algures entre estes dois parâmetros deverá situar-se a boa solução para o sucedido. A UEFA e a FPF que decidam, pois eu nem conheço as leis que lhes cumpre aplicar.
O que não convinha nada era que se encontrasse uma solução como aquelas para que apontam, na sua larga maioria, os meus amigos - que, no que toca ao futebol, são devotos. É que as muitas conversas que com eles mantive conduziram-me à conclusão de que, em regra, os mais severos críticos do trabalho técnico que Scolari vinha desenvolvendo fazem o juízo mais negro do incidente e defendem a rescisão do seu contrato com a FPF, se possível com opróbrio e ostracismo; e os mais crentes na repetição do passado tendem a pensar que Scolari foi gravemente provocado, se não mesmo agredido, pelo que uma admoestação (ou será advertência?) reporia a Terra em órbita e cobriria com um largo manto branco as nossas consciências. Ou seja, o episódio não é visto como motivo de julgamento por si mesmo, mas como uma oportunidade para procedermos de acordo com o que pensamos ser a excelência ou a miséria técnica do treinador.
Eu sei que o senso comum é incomum no futebol. Ou, pelo menos, tem dificuldade em respirar aí. Mas, se quisessem abrir uma excepção, permitíamos que o homem fosse julgado pelo murro no sérvio, sem com isso os entendidos abdicarem de ajuizar sobre se ele ainda é, ou já não é, útil ao futebol português.
Dir-se-á que bem prega Frei Tomás. De facto, às primeiras imagens televisivas da ocorrência, eu também resvalei para a sua instrumentalização, exclamando, numa roda de amigos: "Óptimo. Amanhã não há Maddie." Mas reconheci depois a ingenuidade. Fiz o que nunca fazem os polígamos: subestimei a compatibilidade das paixões. De facto, o caso Maddie não esmoreceu. Boa parte dos media (portugueses, ingleses e cada vez mais de todo o mundo), a descontrolada devassa do inquérito policial e o alucinante carrossel de lágrimas e bílis que a multidão sempre cavalga mantiveram o abraço tentacular que fecha cada um de nós na sua consciência. O estatuto de arguido dos McCann, em vez de contribuir para a sua defesa, fez com que só eles tivessem de respeitar o segredo de justiça. A verdadeira defesa, a que podiam fazer na praça pública, tiveram de abdicar dela. E se The Sun, ou outro expoente máximo do jornalismo mínimo (que, felizmente, Portugal ainda não tem), pode dar-se ao luxo das intrigas, das especulações sem freio, das falsas pistas e das violações da privacidade, é porque é sobre nós que recai o labéu da democracia que não consegue pôr a funcionar um Estado de direito.
Passeiam-se por entre nós o preconceito e os pequenos rancores. Ora, se os McCann forem culpados, nos sinistros termos com que nos acenam, pagarão por isso o altíssimo preço do sentido das suas vidas. Mas se vierem a ser reconhecidos inocentes, já nenhuma consolação daí advém: por sobre perderem a filha, perderam a intimidade e a dignidade, talvez fácil, mas gentil, que o anonimato traz consigo. A primeira hipótese tem remédio. A segunda não. E eu não quero fazer parte disso.
«DN» de 16 de Setembro de 2007

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