A QUADRATURA DO CIRCO
Antologia de todos nós
Por Pedro Barroso
SAIU HÁ ALGUM TEMPO uma Antologia de trabalhos meus, produzidos até 1990.
Passe a publicidade, que este não é o local onde isso se confunda, esse acto de nos fazerem colectâneas de trabalhos nossos significa sempre um enorme questionamento pessoal. Mas as reedições são sempre espaços em que confirmamos e redescobrimos tanta coisa de nós, tanta memória colectiva, tanta saudade, que acho que essa reflexão merece ser aqui compartilhada convosco.
Em primeiro lugar, apetece-nos, de facto, nestas alturas perguntar:
-Fui eu quem fez isto?
E a resposta surge, quase distante:
-Não sei. Parece que sim.
Difusa no tempo, ainda conservo a memória dessa fúria. Dessa agitação.
Era um tempo bonito de viver e acreditar. Convidavam-me e eu partia. Cheirava-se o país inteiro nas canções. Norte e sul. Ilhas. Emigração. Era como que partir para caçadas de emoções. Havia Cooperativas e Associações. Gente generosa e calejada, tentando ordenar as vidas de um modo diverso de um universo submisso que lhes tinha sido ensinado de pequenos.
Acreditava-se que a amizade, a solidariedade e a generosidade seriam eternas.
Essa reflexão obrigatória sobre nós nestas ocasiões, lembra-me, neste caso, vagamente, a semente indelével de uma vida estampada nos palcos improvisados. Talento – o que houvesse – esse era desbaratado perdidamente por um país sedento de cultura.
Um país insólito e esquecido, ainda hoje tão por descobrir. Hoje mais cinzento e falso do que nunca. Injusto, tecnocrata e esquecido da sua própria “Antologia” de valores maiores. Talvez a precisar que lhe reeditem também a memória de êxitos e emoções passadas. Para se lembrar, como pertence, das pessoas que parece ter voltado todos os dias a esquecer. E que socialismo não é apenas uma palavra bonita.
Mas eu lembro.
Actuei em sítios onde nunca se vira um microfone. Noutros – graças a geradores – onde não havia energia sequer. É uma história imensa que fica por fazer. Um dia, se houver justiça e tempo, se poderá e deverá investigar melhor a forma desarrumada e breve, intensa e imperiosa que mascarava a raiva de lutarmos com armas desiguais.
A minha geração de cantores, músicos e poetas, perdoem-me, foi heroica.
As grandes multinacionais do disco de um lado, invadindo tudo; e a nossa luta por um lugar aqui e ali, onde nos aceitassem e nos dessem um mínimo de apoios para produzir música. Era uma luta desigual, claro. Pantanosa. Ingrata, pelas condições em que tudo era feito. Outra tecnologia, a do “ erra, corta, estraga, repete, corta, cola, repete, estraga, não dá para repetir, despacha-te, deixa estar assim que está bem…” E pronto.
Era a necessidade de fazer rápido e bem. Os orçamentos limitados. As condições politicas e sociais comandando a nossa própria criatividade. Tudo virado ao contrário. Tínhamos talvez um factor positivo – a Rádio e a TV passavam os cantores portugueses. Vá lá… valha-nos isso. Hoje só alguns, sempre os mesmos aliás, de lóbi instalado e mercado certo.
Foi um tempo também de uma infância poética e musical infinda. Bonita e sã. Provavelmente, hoje sabe-nos a pouco. Mas na época era tanto – era tudo o que pudemos e soubemos fazer com as condições e o tempo sobressaltado que nos davam para fazer música e poesia.
A espaços, ouço-me agora nesta pequena colectânea e sinto que há já uma História possível. A que as canções dessa geração em parte relatam, falando do que falam. A caminho dos 40 anos passados, tais coisas passam a ser mais da história de uma geração que foi a nossa, do que de nós próprios.
Só posso ouvir hoje com um sorriso brando tudo o que em tal “Antologia” se encerra. A música e as palavras. E a alma generosa, improvisada e grande de um acreditar colectivo que integrei. Que todos integramos.
Porque aqueles não foram tempos normais vividos na acalmia de uma vivência nacional tranquila em que pudéssemos fazer composição académica. Aprendíamos muito, quase tudo, essencialmente uns com os outros, quando saíamos em bando por aí fora.
A rua e o mundo chamavam-nos, dia sim, dia não. Partíamos muitas vezes a troca de nada. Raramente tivemos apoios institucionais. Eram tempos em que tudo era instintivo e puro. Genuíno. Convidavam-me para ajudar à ambulância nova para os Bombeiros. Havia aquela miúda que tinha leucemia e não tinha dinheiro. A cooperativa de Albernoa que precisava de um tractor.
E eu fui, amigos. Fui sempre. E cantei e toquei. E fiz sempre o que achei justo, correcto e bom. Errando nas escolhas decerto muitas vezes. E lá voltava a dar aulas, trôpego com sono, na segunda-feira.
Por isso, hoje, até os erros destes discos me enternecem.
Quem fez isto fui eu, sim. A escrita, o canto e o sonho.
Um outro jovem e distante eu, que hoje resultou num autor dorido e bem mais exigente. Mas guardo a memória de um exaltado e incansável rapaz, depois já homem, que perdia noites guiando, que nelas estragou e viveu amores desconcertados, que acreditou muito em coisas demais, que foi sincero e emocional até à alma e ao sangue.
E que nos intervalos do trabalho, de tanta saga, de tanta e tão espalhada vivência de palcos, viagens e cansaços foi compondo canções conformes à sua identidade. Ao seu sentir, ao seu julgar e ao seu saber.
É esse o espaço que assim revisito nessa Antologia. Por vezes é bom re-ouvirmos a candura outra do que já fomos. Repensar-nos e re-emocionarmo-nos. Perdoem o desabafo piegas, hoje demasiado pessoal e auto contemplativo.
Foi no tempo, imaginem, em que Portugal parecia ter alma, e vida e espontaneidade.
Teria eu nessa altura vinte e tais. Depois 30. Para o fim deste trabalho recriado já estava perto dos 40 anos, e a amargura silente instalava-se já, desconfiada, no meu peito.
Ou se calhar foi ontem e eu não dei por isso.
E o país todo aí, à espera de recomeçar.
A estrada, a fome de alcançar, a raiva, a alma, a velha guitarra, tudo.
Passe a publicidade, que este não é o local onde isso se confunda, esse acto de nos fazerem colectâneas de trabalhos nossos significa sempre um enorme questionamento pessoal. Mas as reedições são sempre espaços em que confirmamos e redescobrimos tanta coisa de nós, tanta memória colectiva, tanta saudade, que acho que essa reflexão merece ser aqui compartilhada convosco.
Em primeiro lugar, apetece-nos, de facto, nestas alturas perguntar:
-Fui eu quem fez isto?
E a resposta surge, quase distante:
-Não sei. Parece que sim.
Difusa no tempo, ainda conservo a memória dessa fúria. Dessa agitação.
Era um tempo bonito de viver e acreditar. Convidavam-me e eu partia. Cheirava-se o país inteiro nas canções. Norte e sul. Ilhas. Emigração. Era como que partir para caçadas de emoções. Havia Cooperativas e Associações. Gente generosa e calejada, tentando ordenar as vidas de um modo diverso de um universo submisso que lhes tinha sido ensinado de pequenos.
Acreditava-se que a amizade, a solidariedade e a generosidade seriam eternas.
Essa reflexão obrigatória sobre nós nestas ocasiões, lembra-me, neste caso, vagamente, a semente indelével de uma vida estampada nos palcos improvisados. Talento – o que houvesse – esse era desbaratado perdidamente por um país sedento de cultura.
Um país insólito e esquecido, ainda hoje tão por descobrir. Hoje mais cinzento e falso do que nunca. Injusto, tecnocrata e esquecido da sua própria “Antologia” de valores maiores. Talvez a precisar que lhe reeditem também a memória de êxitos e emoções passadas. Para se lembrar, como pertence, das pessoas que parece ter voltado todos os dias a esquecer. E que socialismo não é apenas uma palavra bonita.
Mas eu lembro.
Actuei em sítios onde nunca se vira um microfone. Noutros – graças a geradores – onde não havia energia sequer. É uma história imensa que fica por fazer. Um dia, se houver justiça e tempo, se poderá e deverá investigar melhor a forma desarrumada e breve, intensa e imperiosa que mascarava a raiva de lutarmos com armas desiguais.
A minha geração de cantores, músicos e poetas, perdoem-me, foi heroica.
As grandes multinacionais do disco de um lado, invadindo tudo; e a nossa luta por um lugar aqui e ali, onde nos aceitassem e nos dessem um mínimo de apoios para produzir música. Era uma luta desigual, claro. Pantanosa. Ingrata, pelas condições em que tudo era feito. Outra tecnologia, a do “ erra, corta, estraga, repete, corta, cola, repete, estraga, não dá para repetir, despacha-te, deixa estar assim que está bem…” E pronto.
Era a necessidade de fazer rápido e bem. Os orçamentos limitados. As condições politicas e sociais comandando a nossa própria criatividade. Tudo virado ao contrário. Tínhamos talvez um factor positivo – a Rádio e a TV passavam os cantores portugueses. Vá lá… valha-nos isso. Hoje só alguns, sempre os mesmos aliás, de lóbi instalado e mercado certo.
Foi um tempo também de uma infância poética e musical infinda. Bonita e sã. Provavelmente, hoje sabe-nos a pouco. Mas na época era tanto – era tudo o que pudemos e soubemos fazer com as condições e o tempo sobressaltado que nos davam para fazer música e poesia.
A espaços, ouço-me agora nesta pequena colectânea e sinto que há já uma História possível. A que as canções dessa geração em parte relatam, falando do que falam. A caminho dos 40 anos passados, tais coisas passam a ser mais da história de uma geração que foi a nossa, do que de nós próprios.
Só posso ouvir hoje com um sorriso brando tudo o que em tal “Antologia” se encerra. A música e as palavras. E a alma generosa, improvisada e grande de um acreditar colectivo que integrei. Que todos integramos.
Porque aqueles não foram tempos normais vividos na acalmia de uma vivência nacional tranquila em que pudéssemos fazer composição académica. Aprendíamos muito, quase tudo, essencialmente uns com os outros, quando saíamos em bando por aí fora.
A rua e o mundo chamavam-nos, dia sim, dia não. Partíamos muitas vezes a troca de nada. Raramente tivemos apoios institucionais. Eram tempos em que tudo era instintivo e puro. Genuíno. Convidavam-me para ajudar à ambulância nova para os Bombeiros. Havia aquela miúda que tinha leucemia e não tinha dinheiro. A cooperativa de Albernoa que precisava de um tractor.
E eu fui, amigos. Fui sempre. E cantei e toquei. E fiz sempre o que achei justo, correcto e bom. Errando nas escolhas decerto muitas vezes. E lá voltava a dar aulas, trôpego com sono, na segunda-feira.
Por isso, hoje, até os erros destes discos me enternecem.
Quem fez isto fui eu, sim. A escrita, o canto e o sonho.
Um outro jovem e distante eu, que hoje resultou num autor dorido e bem mais exigente. Mas guardo a memória de um exaltado e incansável rapaz, depois já homem, que perdia noites guiando, que nelas estragou e viveu amores desconcertados, que acreditou muito em coisas demais, que foi sincero e emocional até à alma e ao sangue.
E que nos intervalos do trabalho, de tanta saga, de tanta e tão espalhada vivência de palcos, viagens e cansaços foi compondo canções conformes à sua identidade. Ao seu sentir, ao seu julgar e ao seu saber.
É esse o espaço que assim revisito nessa Antologia. Por vezes é bom re-ouvirmos a candura outra do que já fomos. Repensar-nos e re-emocionarmo-nos. Perdoem o desabafo piegas, hoje demasiado pessoal e auto contemplativo.
Foi no tempo, imaginem, em que Portugal parecia ter alma, e vida e espontaneidade.
Teria eu nessa altura vinte e tais. Depois 30. Para o fim deste trabalho recriado já estava perto dos 40 anos, e a amargura silente instalava-se já, desconfiada, no meu peito.
Ou se calhar foi ontem e eu não dei por isso.
E o país todo aí, à espera de recomeçar.
A estrada, a fome de alcançar, a raiva, a alma, a velha guitarra, tudo.
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4 Comments:
Como eu o compreendo...
Á cada dia que passa é mais evidente que temos que o fazer novamente com mais acutilancia e menos, perdoem-me a expressão, romantismo. Caro Pedro, acredite que neste pais muitos mais mais pensam assim só precisamos que vocês nos guiem.
Forte abraço de Cinfães !
Vitor Esteves
Quem não viveu esses tempos com o coração, não sabe o que é viver. Eram tempos, em que todos os sonhos pareciam possíveis e todas as realidades se podiam mudar.
Pedro, que texto tão bonito, tão verdadeiro ,tão sentido, de um tempo, outro, que nada tem a ver com o presente. Sempre gostei muito do que escreve, nas suas canções. Comovi-me agora, com estas recordações mas soube-me bem voltar atrás, alguns anos, bastantes. Obrigada!
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