12.11.07

São Martinho

Por António Barreto

ESTE É UM GRANDE SANTO! Trabalhador, soldado e milagreiro, veio dos lados da Hungria, no século IV, passou por meia Europa, acabou Bispo de Tours. Ficou famoso o episódio da capa que cortou para agasalhar um mendigo. Dezenas de igrejas são-lhe dedicadas e está representado em algumas das mais belas catedrais, como em Tours, Chartres ou Beauvais. Foi enterrado a 11 de Novembro. Vem daí o Verão de seu nome. Os seus feitos, como as actividades militares em nome do cristianismo; a fundação do primeiro mosteiro francês; a sua aclamação, como Bispo, pelo povo; a caridade que pregava e praticava; e a reputação de cura de leprosos, correm o risco de ficar no segredo dos livros. Por causa da festa do vinho. É cada vez mais provável que o seu nome fique para todo o sempre ligado a esta bebida, pela qual, que se saiba, não terá feito grande coisa.
Hoje é dia de apreciar e beber vinho. Mas também, já agora, de falar, escrever e reflectir sobre o vinho. Se existe sector ou produto no qual se fez obra importante, nas últimas décadas, foi no vinho. E na vinha, com certeza. Apesar da União Europeia. Apesar dos governos. A história da modernização da vinha e do vinho, com vinte ou trinta anos, serve para ensinamentos. Nos anos oitenta, por exemplo, o primeiro sector agrícola ou agro-industrial (para não falar de todos os outros) que soube adaptar-se às regras do mercado mundial e da Europa, foi o do vinho do Porto. Mas poucos anos foram necessários para que os outros vinhos, tinto e branco, de todas as regiões, sobretudo do Douro e do Alentejo, se transformassem e se apresentem, hoje, de boa cara e melhor corpo.
Pensemos nos anos setenta. Encontrar bons vinhos no comércio e nos restaurantes era fruto de investigação meticulosa. Os vinhos a granel, os vinhos de garrafão, os vinhos de produtor, para já não mencionar “aquelas pomadas” que condenavam a saúde de qualquer amador, eram de qualidade medíocre, mal feitos, mal fermentados, mal acondicionados, mal preservados, mal engarrafados, mal apresentados. Eram massas de vinhos indiferenciados, sem gosto nem carácter. O Barca Velha, o Frei João, o Luís Pato ou os vinhos do Buçaco eram excepções. Quase tudo estava errado, das vinhas aos tratamentos, da vinificação ao comércio. Mas, dizia-se alegremente, Portugal produzia dos melhores vinhos do mundo!
Tudo mudou. Há hoje centenas de garrafas, de marcas e de quintas que produzem excelentes vinhos, capazes de comparar com os melhores do mundo. Os melhores Portos e os melhores do Douro, do Alentejo e do Dão, também agora da Estremadura e até dos Verdes, figuram honrosamente nas listas internacionais dos melhores vinhos do mundo. Há já nomes consagrados. Ainda se não fala, na Europa ou nas Américas, da excelência do vinho português, mas já muitos conhecem o Vale Meão, o Ferreira ou Ferreirinha, o Niepoort, o Quinta do Crasto, o Symington, o Monte d’Oiro, o Esporão, o Cortes de Cima ou o Quinta do Valado. Com excepção dos vinhos da Ferreira, quase todos estes mencionados, mais outros famosos como as quintas do Côtto, do Infantado e da Casa Amarela, dos Lavradores de Feitoria, das quintas do Noval, do Vale D. Maria, da Pelada ou da Casa de Santar, têm em geral dez ou vinte anos, por vezes menos. Pintas, Poeira, VT, Vinha da Ponte, Vinha Maria Teresa, Redoma, Charme, Batuta, Chocapalha, Madrigal, Incógnito e Chryseia são nomes novos, recentes, sem tradição, mas já com enorme reputação. Além das vedetas, já há muito bons vinhos médios ou correntes. Até já há quem saiba fazer bons vinhos brancos!
Como se fez isto? Como foi possível? Com empresários dedicados, em primeiro lugar. Com investimento. Com enólogos qualificados. Com duas escolas superiores empenhadas na vinha e na enologia. Com agrónomos. Com tratamentos da vinha. Com selecção de castas e de uvas. Com ciência e tecnologia. Com adegas decentes. Com boas rolhas. Com estratégia comercial. Com a determinação de preservar o singular, o rústico, o “terroir”, como se diz na gíria. Com os olhos postos na exportação. Sem absentistas. Sem intervenção do Estado. Sem proteccionismo. Apesar do governo. Mau grado a União Europeia. Contra a indiferença das autoridades, que se escudam atrás das “políticas europeias”.
Tudo mudou? Quase tudo. Para melhor? Nem tudo. Ainda há dezenas de milhares de produtores sem qualificações e sem capacidade. Lavradores que pensam que a natureza dá e que não é preciso trabalharem. Excessivas quantidades de mau vinho. Dezenas de milhares de hectolitros que nem abaixo do preço de custo se vendem. Proprietários que imaginam que seja possível fazer vinho decente sem tecnologia e sem ciência. Cooperativas mal geridas e sem capacidade técnica ou financeira. Milhares de pequenos agricultores sem assistência técnica. Excessiva concentração financeira em certos sectores, como no do vinho do Porto. E desinteresse do governo perante um sector que já não rende, como outrora, elevada percentagem das exportações nacionais.
Há muitas lições a retirar desta breve história. O sector económico que mais e melhor mudou, proporcionalmente, foi o que teve menos intervenção dirigente do Estado. Também foi aqui que menos se fizeram obras de fachada ou colossais investimentos para dar nas vistas. Foi no vinho que se resistiu à moda de fazer igual ao estrangeiro. É no vinho que mais se tenta conciliar a tradição e a ciência. É uma profunda reforma, em curso, feita por empresários, lavradores, cientistas e técnicos, não por administradores, políticos ou empreiteiros. O que se está a fazer não começou nas leis, nem em planos integrados de reestruturação. Começou no princípio, nos empresários e nos trabalhadores, nas quintas. É por isso que não basta ter cheque, fundo europeu e lei. Por vezes, isso até atrasa.
Apostila: André Freire corrigiu-me. Com razão. Há duas semanas, dizia eu que Durão Barroso tinha mentido relativamente aos impostos: prometera baixar e tinha aumentado. Não é totalmente verdade. Baixou de facto o IRC (de 30 para 25 por cento), mesmo se aumentou o IVA (sem anunciar na campanha) e não desceu os escalões mais altos do IRS (como tinha prometido na campanha).
«Retrato da Semana» - «Público» de 11 de Novembro de 2007

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2 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Ver o post anterior a este, em que se pergunta em que igreja está este vitral.

Há um prémio para a resposta que, além de certa, seja fundamentada.

12 de novembro de 2007 às 12:53  
Anonymous Anónimo said...

Que bom que era...
Se o Estado deixasse os professores ensinar em vez de os obrigar a «educar»! Talvez conseguíssemos fazer com as escolas o que fizemos com o vinho...

12 de novembro de 2007 às 17:51  

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