9.11.07

Como sempre sucede aos fins-de-semana, aqui fica um post-aberto para quem o quiser utilizar.

NOTA: A imagem é que é diferente do habitual, desta vez alusiva ao S. Martinho cuja véspera vou comemorar na Golegã.

Até logo, pois!

2 Comments:

Blogger Pedro Tomás said...

O Tóino Marreco

Ele vivia em frente à sua casa. Morria de medo dele. Os pais sempre lhe disseram para ter muito cuidado, porque ele lhe podia fazer mal. Toda a gente o evitava, e os pais dele não eram excepção.

Quando jogava à bola com as outras crianças da rua, tinha sempre extremo cuidado para que a bola não saltasse para o lado de lá do muro. Aquele muro era a segurança deles. Separava-os dos "malucos": o Tóino Marreco e a Duca. Irmãos, viviam com a mãe, já idosa.

O muro, com cerca de um metro de altura, ladeava metade do quintal. De cimento apenas, nunca tinha sido pintado. As posses eram poucas. Não tinham água corrente, como todos os outros tinham. Tomavam banho num alguidar, umas vezes com água fria, outras com água quente. Tinham um curral com animais, mas os míudos não sabiam bem do que eles viviam. Nunca se via ninguém no quintal, cujo muro ladeava, a não ser quando tratavam dos animais.

Invariavelmente, quando a bola saltava o muro, o Tóino já estava a abrir a porta aos gritos. Estava sempre a espreitar pelas frestas entre as tábuas, à espera do momento exacto. Só podia! "Seus desgraçados" - esgrimia ele - "Eu dou-vos uma tareia!". O Tóino Marreco aterrorizava os miúdos porque ameaçava bater-lhes e sempre que podia lhes ficava com a bola. E corria atrás deles com um pau. Um dia, viu-o estendido no chão, com espasmos, os olhos revirados e a língua enrolada. Acontecia-lhe muitas vezes, afiançaram-lhe. Coisas de malucos, pensou.

Mas ele não gritava com eles por a bola cair no seu quintal. Era pelo que vinha a seguir... Quando a bola galgava o muro, todos se olhavam com pavor... Quem ia buscar a bola ao quintal do Tóino? Tiravam à sorte logo início do jogo, para não se perder tempo e, num ímpeto medroso, o desgraçado escolhido lá saltava o muro. O escolhido corria a toda a velocidade: apanhava a bola e corria toda a largura do quintal, uns vinte metros, para o outro lado, tentando que o Tóino não o apanhasse. Saltar o muro para o lado de cá estava fora de questão. A altura era maior do lado de dentro do quintal e isso para uma criança de 6 anos era um obstáculo intransponível. Assim, quando lhe calhava em vez, dava a volta a toda a casa, para poder regressar ao "campo de jogo", a rua, em segurança, enquanto o Tóino voltava para trás da porta, espreitando entre as tábuas.

Fora de casa o Tóino não metia medo a ninguém. Nem crianças, nem adultos. Era antes motivo de chacota. Era o maluqinho. Ele e a irmã. Na rua não se metia com ninguém, andava a falar para os seus botões, normalmente a dizer mal dos que o gozavam, em voz alta, com os olhos apontando para o chão. Sempre que o via, lá ia ele, a refilar... Toda a gente o gozava à brava.

Certo dia a mãe morreu. Depois a irmã. E ele, sozinho, foi viver com outros familiares. Nunca mais se ouviu falar dele.

Aquelas crianças cresceram. Estudaram. Mudaram de casa, de rua, de aldeia. Empregaram-se. Um deles, vinte anos volvidos, num intervalo do trabalho, foi comer qualquer coisa. Entrou na pastelaria e quem encontrou ele? O Tóino Marreco, que toda a gente ainda gozava, a beber um galão e a comer uma tosta mista. Os novos colegas de trabalho, que o acompanhavam e que nunca tinham visto o Tóino com a sua cara severa e a grande marreca nas costas, riram-se uns para os outros daquela figura bizarra. Mas ele fixou o olhar no chão, sem nada dizer, esperando que o Tóino não o reconhecesse. Se isso acontecesse ia ser o alvo da chacota geral: ninguém falava com o maluquinho.

Sentaram-se numa mesa distante e o Tóino continuou a beber o seu galão e a comer a sua tosta. Quando acabou, pagou e dirigiu-se à saída. Passou pela mesa deles e deteve-se por um momento.

- Então, estás bom? Já não te via há uns anos! Estás aqui a fazer o quê? - inquiriu o Tóino, com os seus modos simples.

Os colegas olharam-nos, primeiro ao Tóino, depois a ele, pasmados.

- Err.... Estou a trabalhar aqui ao lado, vim comer qualquer coisa - respondeu, visivelmente envergonhado.

- Ah... - respondeu o Tóino - Ainda bem! E a tua mãe, está boa? Manda-lhe cumprimentos meus... Olha, boa sorte com o teu trabalho! - e foi-se embora.

- Obrigado... - teve ainda teve de dizer, enquanto o Tóino virava as costas e seguia refilando com os seus botões, como habitualmente. Os colegas fitavam-no, percebendo a sua visível perplexidade mas ao mesmo tempo um pensativo sorriso na sua face.

Afinal, durante tantos anos, tal como os outros, pensou que o Tóino era perigoso, maluco, que não ligava a ninguém, refilava com toda a gente. Afinal o Tóino era uma pessoa lúcida, apesar de ter alguns problemas mentais e sofrer de eplilepsia. Isso, aliado à pobreza extrema e à sua marreca, tornava-o um marginal. Mas o Tóino lembrava-se dele, e naquele ambiente totalmente diferente de onde o costumava situar, para seu espanto, não lhe guardava rancor por causa das investidas ao seu quintal... E teve até o cuidado de mandar cumprimentos à sua mãe e lhe desejar boa sorte no trabalho.

Vinte anos depois, naquele momento, ele percebeu que afinal o António não era maluco nem perigoso. Era, tão somente, incompreendido.

10 de novembro de 2007 às 12:20  
Blogger R. da Cunha said...

Permita-me um conselho de Amigo:
Não abuse da água-pé, que pode toldar-lhe o esclarecido espírito.

10 de novembro de 2007 às 18:20  

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