3.12.07

No centro da cidade, um tesouro...

Por António Barreto

AINDA NÃO SÃO AOS BANDOS, mas há já figuras sinistras que voam pelo Príncipe Real, pelas ruas da Escola Politécnica, da Alegria e do Salitre, pelos jardins da Faculdade de Ciências e pelo Jardim Botânico, até ao Parque Mayer. Já há “interessados”, com muito dinheiro, que querem “desenvolver” a área, “promover” a habitação, abrir escritórios de luxo, criar unidades hoteleiras, centros comerciais e zonas de lazer. Parece mesmo que certos edifícios do Príncipe Real foram já adquiridos. Está ali, sem dúvida, uma “janela de oportunidade”, um “desafio da modernidade” e uma “aposta na qualidade”. A Lisboa competitiva ameaça passar por ali.
O CONJUNTO está identificado. Já foi a Quinta do Monte Olivete e já pertenceu aos Jesuítas. Já foi o Noviciado da Cotovia e o Colégio dos Nobres. Já foi a Escola Politécnica e a Faculdade de Ciências. Hoje alberga dois museus, muitas relíquias e alguns pardieiros. É a antiga Faculdade de Ciências, seus imóveis, anexos e jardins, a que se acrescenta o Jardim Botânico. Inclui alguns edifícios escolares, uns desactivados desde o incêndio de 1978, outros depois disso. Pertence à Universidade de Lisboa. São cerca de seis hectares no centro da cidade. Espaço único que qualquer capital civilizada aproveitaria e mostraria, orgulhosa, aos seus cidadãos e ao mundo.
O INVENTÁRIO do que ali está é imenso. Com a ajuda da directora Ana Eiró e da investigadora Marta Lourenço, pode resumir-se, por defeito, no seguinte. Os Museus da Ciência e da História Natural, que incluem o museu e laboratório mineralógico e geológico, o museu, laboratório e jardim botânico e o museu e laboratório zoológico e antropológico. O Observatório Astronómico. A Biblioteca científica dos séculos XV a XIX. Os restos das instalações escolares do século XIX, nomeadamente as salas, laboratórios e anfiteatros da química, da física e da matemática. O Picadeiro Real do Colégio dos Nobres (nascido em 1766), fabuloso edifício, hoje transformado em pavilhão de desportos. Os arquivos históricos de várias instituições científicas.
O CONTEÚDO é impressionante. São colecções notáveis de instrumentos científicos e técnicos de química, física, astronomia e matemática dos séculos XIX e XX (mais de 10.000 peças). Arquivos históricos (mais de 100.000 documentos). Bibliotecas científicas dos séculos XV a XX (25.000 livros). Mobiliário muito curioso e interessante. Colecções de antropologia (2.000 esqueletos), de mamíferos (5.000 espécies), de aves (2.600), de peixes (7.000 lotes), de anfíbios e repteis (1.000), de invertebrados (30.000 lotes) e de sementes (4.000 lotes). A que se acrescentam os herbários (250.000 espécies) dos séculos XVIII e XIX, incluindo os de Vandelli, Brotero e Welwitsch. Ou as colecções de mineralogia, petrologia, estratigrafia e paleontologia (80.000 peças). E finalmente o fantástico Jardim Botânico (1.500 espécies), com mais de 150 anos de existência, sobre o qual dou a palavra ao Senhor Félix Krull, criação de Thomas Mann, que nos diz, nos anos cinquenta, a propósito de Lisboa: “A sua primeira visita deverá ser para o Jardim Botânico, sobre as colinas do Oeste. Não tem igual na Europa inteira, graças a um clima em que a flora tropical prospera tanto como a da zona temperada. O jardim está cheio de araucárias, de bambus, de papiros, de iúcas e de todas as variedades de palmeiras. Aí verá com os seus olhos plantas que, no fundo, já não pertencem à actual vegetação do nosso planeta, mas a uma flora mais antiga como, por exemplo, os fetos arbóreos. Vá lá imediatamente e repare no feto arbóreo do período carbónico. É mais do que uma pequena história cultural. É toda a antiguidade da terra”!
A AMEAÇA dos promotores não é a única. A outra é a da ruína e da degradação. É um verdadeiro tesouro no meio da cidade, mais ou menos ignorado, decadente, parcialmente abandonado, com equipamentos degradados e espécies mal conservadas... Os efeitos desta ameaça já se podem observar à vista desarmada. Há instalações fechadas porque perigosas. Há paredes degradadas e soalhos a cair. Há salas e edifícios encerrados por razões de segurança. Muitas colecções estão fechadas por falta de condições de preservação ou de exibição. O Jardim Botânico tem falta absoluta de jardineiros e carência de verbas para tratamentos e manutenção, não havendo sequer orçamento suficiente para pagar a rega. Degradação e abandono são as palavras que vêm ao espírito, apesar de uns bandos de alunos que visitam os locais e mau grado alguns investigadores e funcionários que se esforçam por manter aquilo vivo. A Universidade não tem recursos para manter ou desenvolver este património. O Governo diz, há muitos anos, que também não tem. Da Câmara de Lisboa, além de intenções vagas, pouco se sabe. Mas, a seu favor, nota-se a abertura de um “concurso de ideias” até ao próximo 4 de Janeiro.
NÃO HAVERÁ, em Lisboa ou no país, inteligência suficiente para preservar e aproveitar este conjunto, utilizando-o para os fins óbvios, como sejam o estudo, a investigação e a divulgação cultural e científica, sem esquecer todas as funções que pode preencher um espaço público único? Não haverá ninguém que não se tenha ainda deixado perverter pela cultura vigente do efémero, da espuma virtual, do superficial e do divertimento? Não haverá ninguém interessado em evitar novos incêndios, inundações, delapidações ou promotores imobiliários? Não haverá um ministro capaz de perceber isto? Um Presidente da Câmara? Um banco? Uma companhia de seguros? Uma empresa? Uma fundação?
SEIS HECTARES e um património tão rico no centro da cidade! Numa cidade onde faltam os espaços verdes; onde são poucos os espaços públicos organizados e acessíveis; onde são raros os locais de repouso e convívio; onde há poucos museus e instituições de divulgação cultural e científica! Nunca saberei exactamente o que mais leva ao desperdício e à degradação. Já pensei que fosse a pobreza. Depois, a ignorância. Agora, acrescento a demagogia dos novos-ricos.
«Retrato da Semana» - «PÚBLICO» de 2 de Dezembro de 2007

Etiquetas:

9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E que tristeza aquela zona da Politécnica ter sido apregoada como ex-líbris aquando da Europália (salvo erro), aí há uma quinzena de anos, e agora estar no estado deprimente em que está.

3 de dezembro de 2007 às 11:25  
Blogger Contacte-nos said...

A demagogia dos novos ricos é aquela que espera-se volte a habitar Lisboa, que leve novas crianças a novas escolas, que encha as ruas de transeuntes e onde o comércio de proximidade seja viàvél, a Lisboa das e para as elites culturais é uma Lisboa vazia de sentido e económicamente falida; É a demagogia daqueles que procuram um espaço para habitar mas não o encontram dentro da cidade, é a demagogia de todos aqueles que se hipotecando anseiam por um espaço ordenado, equilibrado estruturado e são atirados por outras vontades para um suburbio inumano, amorfo sem elementos marcantes ou definidores de um território que pudessem chamar de nosso, de meu, de seu; onde se pudesse criar laços de empatia com a res-publica vs res-privada.
Como em tudo existe um equilibrio, olhar apenas para um lado da equação não acrescenta nada ao resultado final, de uma Lisboa vazia de gente e cheia num qualquer Shopping perto de si.
Assim como anuncia o adventismo do efémero tambem poderei argumentar com o isolacionismo do imutávél...

3 de dezembro de 2007 às 13:22  
Blogger Blondewithaphd said...

With all due respect (plus the academic and intellectual respect I owe you), don't you think that all your questions will be answered in the negative? In a country where mediocrity is the norm, how can we expect someone will care about a cultural past, learning opportunities or mere spaces in which people can stop for a second and think.
Money, consumerism, status, parking lots and apartment blocks is basically what interests people. What is a botanical garden compared to a shopping emporium? What is a science museum with relics of a past age when kids are addicted to mp3s and mobiles?
I would so much like your questions to have positive answers. Honestly I would!

3 de dezembro de 2007 às 16:48  
Anonymous Anónimo said...

Não percebi a mensagem deste Sr Castanhinha. Não percebi mesmo.
O texto de António Barreto e a sua mensagem, são importantíssimos para a preservação e restauro de um património de valor incalculável. Organizem uma «Frente de Cidadãos» para a preservação do património de Lisboa. O capital selvagem arrasa tudo ...

3 de dezembro de 2007 às 17:05  
Blogger Contacte-nos said...

Quando se refere ao capital como sevagem, explica tudo.
Mais lhe explicaria caro anónimo se de um anónimo não se tratasse.
Uma questão de principio.

3 de dezembro de 2007 às 18:33  
Blogger Ant.º das Neves Castanho said...

Não se invertem tendências e inércias de décadas em um só mandato político...


A zona do Príncipe Real é um tesouro antigo, que uma cosmética moderna, pretensamente "salvadora" pode desfigurar (espero que não seja isso que deseja o João Castanhinha).


O valor material e imaterial desta zona da Cidade exige uma abordagem delicada e sábia (mas onde é que isso existe no Portugal de hoje?), mas ao mesmo tempo firme e decidida.


Não creio em quimeras urbanísticas, como os Planos de Pormenor (meros alibis para a especulação desenfreada), nem em soluções pré-desenhadas, como a da "devolução da Cidade às famílias da classe média-alta".


Acredito, sim, que tudo e todos têm um papel a desempenhar, na medida justa - residentes da clase média e alta, com ou sem crianças, intelectuais e artistas, imobiliárias e museus -, assim os poderes públicos saibam criar as condições para que os diferentes interesses particulares sejam organizados e canalizados para bem público.


Ou não fora exactamente essa a própria definição de Urbe...


Agora não se pense é que se pode salvar o Príncipe Real usando as receitas da "subúrbia": «Office Parks", centros comerciais gigantescos e condomínios fechados.


Para isso temos já Oeiras, Sintra, Cascais e mesmo algumas "testas-de-ponte" já em plena Cidade, como na zona das Amoreiras...

4 de dezembro de 2007 às 17:20  
Blogger Contacte-nos said...

De acordo, retalhar a cidade está fora de questão, a antitese de tudo aquilo que uma cidade deve ser, plural, multicultural e de encontros;
Em relação ao novo-riquismo, apenas refiro que não entendi o que A.B quis dizer na sua conclusão...falava de especuladores imobiliário? Se fala porque é que pede e cito "Não haverá ninguém interessado em evitar novos incêndios, inundações, delapidações ou promotores imobiliários? Não haverá um ministro capaz de perceber isto? Um Presidente da Câmara? Um banco? Uma companhia de seguros? Uma empresa? Uma fundação?"...
Bom, estes actualmente são os especuladores actuais (A banca,Fundações,empresas etc...), o tempo do negociante imobiliário e do xico-espertismo acabou, agora, são esses mesmos que A.B. pede por socorro os maiores especuladores, os mais refinados e que dominam o mercado do imobiliário, quer pelo processo de créditos, fundos de investimento fechado etc...mas isso são outras conversas.
Olhos bem abertos, os intervinientes mudaram, alguem reparou nisso? Acho que não.
E ainda não percebi o porque do ataque ao novo-riquismo...ah como era bom isto antigamente, as familias, as familias...
P.s. E porque raio é que ninguem se identifica neste blog? Digo, mas não digam que fui eu sindroma?

4 de dezembro de 2007 às 20:04  
Blogger Ant.º das Neves Castanho said...

De acordo com o J. Castanhinha: a subserviência acrítica a tudo o que fazem e dizem os "vultos" da nossa "cultura" é tão negativa como a sua ignorância...


Banca = novos especuladores: também muito bem observado. E não é apenas de uma forma passiva, através dos métodos indirectos que indica, mas igualmente intervindo directamente na criação de empresas imobiliárias, como a ESPART e outras, que levam já grande vantagem sobre o tradicional "Pato-bravo".


Mas, como digo, tudo isso é legítimo e aceitável numa sociedade de mercado livre como a nossa: mais uma razão para que as autoridades que defendem (ou deveriam defender...) o INTERESSE PÚBLICO não se demitam do seu papel definidor de regras e objectivos claros.


Isto daria pano para muitas e compridas mangas: é mais fácil para a nossa maneira de ser preguiçosa passar a vida a criticar a iniciativa privada, que no fundo, mal ou bem, apenas faz o seu papel (como um jogador ardiloso), do que apontar as omissões e incapacidades (incompetências?) dos vários poderes públicos em Portugal no que toca ao Urbanismo, desde os saudosos anos 60...


António das Neves Castanho.

5 de dezembro de 2007 às 18:09  
Anonymous Anónimo said...

Blondewithaphd, se sabe ler português porquê opinar em inglês?!?
O QUE É NACIONAL É BOM!

P.S – Da pesporrência da ASAE ao autoritarismo “Socretino” a diferença é longínqua apenas para míopes.

8 de dezembro de 2007 às 00:20  

Enviar um comentário

<< Home