25.1.08

A Quadratura do Circo

Pesadelo
Por Pedro Barroso
RESOLVI. Eu quero ser taxista na Suiça, bancário em Mogadouro, presidente das estradas, hospitais, qualquer coisinha.
Eu explico.
Um estranho sonho anda a assaltar-me, recorrente e infantil. Um sonho em que tenho fome, levanto-me para comer, vou à cozinha, abro o frigorífico e nada se apresenta nas magras e desoladas prateleiras.
Sim, eu sei. A luz fluorescente não ajuda nada a uma imagem de felicidade e aquele pedaço de queijo duro e podre é de há dois meses. Tenho de me lembrar de o deitar fora. Sou um pouco desorganizado, paciência.
Volto para a cama desiludido e faminto, e adormeço sonhando que um dia era tesoureiro na freguesia de Almoster de Cima e uns anos depois, meteoricamente, sou ministro e nada me falta.
Mas quando leio as reformas faraónicas dos Teixeira Pintos e outros, fico a perceber que o engenheiro não é mais, afinal, que um aprendiz mal pago e obediente. Talvez por isso tão maldisposto.
Compreendo. O verdadeiro bolo-rei é doutra pastelaria.
A coisa comigo também acaba sempre mal, pois acordo do sonho e anda a vida no mesmo pesadelo de ontem, nada melhorou. Aí, vou à tasquinha mais perto e peço um prego, mais um, para cravar a vida de ideias.
E sonho acordado, que é o modo mais difícil de sonhar.
Entretanto lembro as reformazitas parcelares acumuladas que também não são más de todo. O país é magnânimo e cavalheiresco.
Então percebo.
O verdadeiro político, ando a aprender, não se mete na política. Mergulha as mãos no q.b. de substância sórdida e matérias inertes, cuida da vida pública apenas o suficiente para poder vir um dia a decorar com dignidade um bom Conselho de Administração. E aspira, no fundo, a uma discreta quebra de visibilidade que lhe dê passagem secreta a um mundo, esse sim, de álacres e prestigiadas funções, almoços sem povo e super-alegres remunerações. Poder a sério é isso.
Torna-se, portanto, no Director convidado do projecto de implementação de Segurança nas barragens; o engenheiro encarregado da Comissão interdisciplinar de averiguação e combate ao buraco de ozono; o gestor do projecto Euclides para a integração do ensino da Matemática nas creches; o Inspector designado para o combate à dermatite piolhosa na região norte e ao vírus da peste suína na região sul; o Presidente da Autoridade nacional de crimes contra o ambiente nos WC públicos; Director do Parque Nacional protector da lagartixa ibérica, etc.
Trabalhos duros, emergentes e urgentes. Cumpridos de uma forma vagamente distante e tranquila. Bem remunerados. Acumulando com o cargo de Administrador de uma qualquer entidade bancária e o de consultor em duas empresas multinacionais de helicicultura.
É natural. São pessoas de influência e boas maneiras.
Há que retribuir serviços tão elevados.
E o meu pesadelo regressa.
Fizemos há trinta e tal anos uma Revolução por menos que isto.
Acordo e digo que não. Adormeço e reconfirmo.
E vejo de novo o frigorífico. Onde raio fui eu buscar o raio do frigidaire? Tenho de voltar a estudar Freud para compreender melhor. Será por estar vazio e ter o pedaço de queijo atrasado e podre?
Não sei interpretar.
Tenho de perguntar ao caixa de Mogadouro.
Não há pesadelos que o aflijam, nem cargos que o assustem, nem amigos que o abandonem.
Ele deve saber como se faz.

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro amigo,
Cante amanhã (e nos amanhãs todos que se lhe seguirem) tal como aqui escreveu. Cante, sempre acreditando que amanhã o mundo será melhor, como acreditava no tempo dessa revolução que diz, e a mudança virá - porque a mudança não nos é exterior, está dentro de nós.
Um abraço.

25 de janeiro de 2008 às 11:14  
Anonymous Anónimo said...

Tem toda a razão...
A vida de sonho de uns poucos redunda no pesadelo de todos nós.
Termos de acordar todos os dias, para o lufa-lufa dos dias repetidos, na luta por uma vida decente.
Recordo uma frase que li no Corrier Internacional (nº 91- 2006, p.44), do escritor Yasmina Kadra e que se aplica:
"Os que deviam proteger os povos, orientá-los, propor-lhes um projecto de sociedade, têm mais o que fazer. Em vez de construirem nações, constroem fortunas pessoais e palácios para reis ociosos."
Assim vai a glória do mundo. É o salve-se quem puder. O outro?!!! Que se desenrasque...

25 de janeiro de 2008 às 17:46  
Blogger Jack said...

Como alguém dizia “eles não sabem que o sonho é que nos trama a vida”. Está bem, nós sabemos, pouco mais ou menos, que o poeta não era assim que escrevia mas, não somos tão dotados como ele e, devido a esse facto, temos o direito e o dever de adaptar o sonho às agruras da nossa vida. O problema aqui apresentado, como é bom de ver, é que o Pedro Barroso anda a sonhar alto demais, isto é, como se dizia antigamente na tropa, “pôs-se a sonhar sem ter o barrete bem enterrado na cabeça”. A falta de pala, tão necessária nestas ocasiões, levou a que os seus olhos vissem, sem compreender, talvez, o resultado típico do programa das Novas Oportunidades…

25 de janeiro de 2008 às 23:34  

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