24.1.08

A Cooperativa Devir

Por C. Barroco Esperança
A COOPERATIVA DEVIR estava domiciliada ao fundo da Rua Duque de Loulé, do lado direito de quem desce, perto do Marquês de Pombal. A livraria era a razão visível da actividade do que foi uma escola de quadros políticos de esquerda, com predominância do PCP.
Tal como a Livrelco, em Entrecampos, para o MRPP, uma livraria numa das Avenidas Novas, para o PS, e a SEDES, para os desiludidos da primavera marcelista, a Devir era o instrumento de reflexão e aprendizagem política dos seus associados. Por isso, juntava ao comércio livreiro as conferências semanais a cargo de alguns dos mais respeitados intelectuais da época.
Mais de um ano depois do meu regresso da Guerra Colonial fez-me sócio o Jorge, da Damaia, que chegou primeiro. Havia companheiros do Cineclube Imagem, habituais nas manifestações contra a Guerra Colonial e vítimas das cargas policiais, e muitos outros que mantinham activa a Cooperativa e encorajavam quem não acreditava na eternidade da ditadura. A Devir era, aliás, um centro de recrutamento para as bases da CDE e para o próprio PCP como se tornou claro depois do 25 de Abril.
Os colóquios semanais, creio que às terças-feiras, eram o corolário lógico de conferências admiráveis a cargo de sócios ou convidados, com a sala respectiva sempre a abarrotar para ouvir Lindley Cintra, Pereira de Moura, Hugo Blasco Fernandes, Adelino Gomes, Sottomayor Cardia, Sérgio Ribeiro, José Manuel Tengarrinha, Carlos Carvalhas, Ana Maria Alves, César Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues e muitos outros, enquanto se ampliava a certeza firmada nos anos doridos da Guerra Colonial: a iminência da derrota militar e da queda do regime.
A PIDE visitava a Cooperativa e apreciava os livros que, com frequência, levava sem pagar, ao contrário dos sócios. Deixava uma espécie de vale com o nome de «Auto de Apreensão», que o saudoso Vítor Branco logo afixava. Geralmente era pacífica a visita e apenas se lastimava o prejuízo e os livros que não se encontrariam noutro lado. Só uma vez vi os pides, numa das visitas, a perderem a compostura e a vociferarem. Vale a pena contar.
De manhã eu leccionava na escola n.º 44, na Rua da Beneficência, e de tarde exercia, para sobreviver, uma actividade comercial a partir de um escritório na Rua de Entrecampos. Foi aí que uma tarde recebi um telefonema com um lacónico e enigmático «aparece». Com o Metro próximo não tardei a chegar. No local já se encontravam cerca de duas dúzias de sócios, número inusitado durante a tarde, e outros chegaram. Dois pides tinham revistado as várias salas e devassavam já a livraria, tendo na mão folhas de papel de 35 linhas, cheias de nomes seguidos da importância com que cada um contribuíra. Todos conhecíamos aquelas folhas que regularmente assinávamos, com o contributo possível, sob o cabeçalho onde se lia: «Subscrição para apoio às famílias dos presos políticos». Era visível a satisfação dos esbirros, com um deles segurando as folhas que revelavam a rede de solidariedade com as vítimas da repressão fascista.
De repente houve uns encontrões, gerou-se burburinho e ouviram-se gritos de um pide: «quietos, ninguém sai». Um dos esbirros ocupou a porta da livraria e barrou a saída, desvairado por ter deixado surripiar as listas, enquanto o outro mandava levantar os braços e revistava os sócios, constrangido com as mulheres.
Descorçoados, assaz embaraçados para se atreverem a pedir reforços, desistiram das buscas e das listas de solidariedade com os presos políticos, desaparecidas graças a alguém que calou o mérito e a audácia.
Não tardou que o Dr. Afonso Marchueta, o Governador Civil cujos hilariantes discursos rivalizavam em indigência com os de Américo Tomás, mandasse cessar de imediato todas as actividades e proceder apenas à Assembleia-geral liquidatária da Cooperativa Devir, cuja data teria de ser previamente comunicada ao Governo Civil.
Marcada para o dia habitual dos colóquios, foi enviada aos sócios a convocatória com a ordem de trabalhos precedida de um ponto prévio: «Informações».
Na abertura Francisco Pereira de Moura, Presidente da Assembleia-geral, declarou que, dada a presença de dois comissários da PSP na sala, se recusava a presidir sob coacção policial, convidando-os a retirarem-se. Foi-lhe dito por um dos polícias que tinham ordens para permanecer e assim fariam. Pereira de Moura disse que, face às circunstâncias, não saindo a polícia, saía ele e convidava para o substituir na condução dos trabalhos o sócio presente com o número mais baixo. Esgueirou-se rapidamente a Júlia para que o lugar coubesse ao Lino de Carvalho, depois de verificada pelo silêncio a ausência de sócios mais antigos.
Iniciou-se assim um braço de ferro com o Governo Civil. O Lino, com a coragem e inteligência que possuía logo transformou a reunião num colóquio em que condenou a ilegalidade e prepotência do Governo Civil e, chegada a meia-noite, hora limite para qualquer reunião, encerrou os trabalhos informando que prosseguiriam no mesmo dia e à hora habitual na semana seguinte com a mesma ordem de trabalhos a ser retomada no «ponto prévio».
Nessa reunião repetiu-se o cenário anterior e, à meia-noite, por não se ter esgotado o respectivo ponto da ordem do dia, de novo se adiou a continuação da discussão para a semana que viria. Mas, quando os sócios se dirigiam para essa terceira sessão da Assembleia-geral, encontraram o edifício cercado pelos touros da ganadaria do capitão Maltês, designação que a polícia de choque granjeara, apoiados pelos habituais carros com os depósitos atestados de tinta azul para danificar o vestuário e marcar os fugitivos para eventual detenção, assaltaram e vandalizaram a Devir, agrediram sócios e selaram as instalações na eloquente prova do que era a primavera marcelista.
«Jornal do Fundão» de 24 de Janeiro de 2008

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