21.1.08

Os Trapalhões

Por António Barreto
OLHE-SE EM VOLTA. Parece reinar a confusão legislativa e executiva. Criando a desordem e o medo, as leis da segurança alimentar deixaram o país num caos autoritário absurdo e irracional. Por todo o lado se tenta rever as leis recentemente aprovadas e repensar os métodos acabados de idealizar. A lei do tabaco lançou a confusão: de pronto, abriram-se excepções para os casinos. Depois, vieram os restaurantes nos centros comerciais, os cafés dentro dos casinos, as cafetarias dentro dos estádios ao ar livre, os casinos dentro dos centros comerciais... Já se pensa em rever, repensar e abrir novas excepções. Na saúde, o fecho de maternidades, centros de saúde e serviços de urgência ou de atendimento permanente deixou umas dezenas de comunidades em crise, autarquias e partidos à deriva, pensa-se em excepções, recua-se, volta-se a atacar. Os sistemas de vínculo à função pública criaram nova desordem, foi necessária a intervenção do Presidente da República e do Tribunal Constitucional, os magistrados viram a sua situação revista, os procuradores também, talvez não se fique por aqui. O aeroporto foi o que sabemos, um caso para a antologia da incompetência, mas ainda nem sequer a decisão deixou de ser “preliminar” e “prévia”, que já começou a discussão sobre o atravessamento do Tejo e a localização exacta da nova ponte. O que vai mexer com os comboios e o metropolitano da margem esquerda, estando para já tudo em causa. Em Lisboa, o Parque Mayer, o Jardim Botânico, os jardins e edifícios da Politécnica, assim como os terrenos da antiga Feira Popular, continuam a sua jornada de degradação em adiamento, de processo judicial em caso político. No Terreiro do Paço, apesar da abertura das estações de metropolitano, as obras estão longe de acabar, a desordem, o desperdício e os custos dos últimos sete anos estão para durar. Na educação, não há decisão definitiva, muito menos estudada e ponderada, sobre qualquer matéria: os programas, os sistemas de avaliação, a contagem das faltas e as causas dos chumbos são só alguns dos temas em oscilação. Na segurança social, o episódio risível do escalonamento dos aumentos de meia dúzia de cêntimos foi mais um exemplo. Na justiça, o rol nunca mais acaba, incluindo as querelas entre as polícias, os sarilhos das investigações no Porto e os infindáveis processos. Nos casos do BCP, da Caixa, dos favores a administradores bancários e dos off shores aparentemente ilegais, a supervisão bancária e financeira deixou muito a desejar. Este é o catálogo. Que peca por defeito. Porquê isto?
HABITUÁMO-NOS A PROCURAR SEMPRE as razões profundas que explicam os fenómenos políticos e sobretudo as decisões. Em particular, as razões sociais e económicas. Aprova-se uma lei e a pergunta surge logo: quem ganha? Cria-se uma instituição e o imediato reflexo consiste em saber quem é nomeado e quem foram os beneficiados. Tomam-se medidas importantes ou aparentemente simples e é sinal de saúde mental procurar quem está por trás: laboratórios médicos? Construtores de obras públicas? Vendedores de cimento, cobre, carvão ou petróleo? Fecham-se escolas, centros de saúde e dependências administrativas e é quase obrigação investigar a fim de descobrir quais foram as autarquias, os profissionais e as empresas que perderam e as que ganharam, sem esquecer os partidos mais influentes em cada sector ou localidade. É bom que se faça este exercício, única maneira de conhecer os verdadeiros motivos da política e de não nos deixarmos enganar pela melodia gasta do interesse público.
ALÉM DESTAS CAUSAS DIRECTAS E SINGULARES, mais propriamente designadas por interesses legítimos ou ilegítimos, há também razões de ordem geral. Poder-se-á, por exemplo, dizer que, nos dias que correm, um dos principais motivos que levam a fazer leis e tomar decisões é o de poupar dinheiro. Verdade. Mas só até certo ponto. A escolha do pretexto para poupar, em concreto, nesta escola, naquela maternidade, numa ponte ou na outra estrada, já traz consigo mais informações sobre as preferências. Além de que este motivo, indiscriminado, é deveras incompetente: cortar a eito sempre conduziu a decisões erradas e a correcções dolorosas. Em sentido contrário, também se deve ter em conta que uma das mais importantes causas para decidir e legislar é a de gastar dinheiro. Gastar muito dinheiro. Como dizia há dias, na televisão, Miguel Beleza, a OTA é muito melhor porque é mais cara. Com isso, ocupa-se gente (o que não é o mesmo que criar emprego), pagam-se favores e cultiva-se uma imagem de energia.
A VERDADE É QUE O CLIMA DE TRAPALHICE se torna cada vez mais evidente. As políticas são erráticas. As correcções sucedem-se. As adendas e rectificações aos decretos-leis repetem-se. Com a publicação de uma nova lei logo surgem problemas e dúvidas, geralmente legítimos e fundados. Será isto só de hoje? Não. Seria injusto considerar Sócrates e o seu governo como únicos autores e principais responsáveis desta nova realidade que é a dos trapalhões no poder. Na verdade, a tendência é antiga. Há já três ou quatro governos e outras tantas legislaturas que o fenómeno vem tomando corpo. Sócrates, o seu governo e o seu partido são apenas os actuais, os últimos e os que mais fizeram para consolidar a tendência para a trapalhice. Serão estúpidos? Não creio. Ignorantes? É possível. Inexperientes? Bastante. Auto-suficientes? Muito.
GOVERNAM PARA A TELEVISÃO. Fazem legislação para as sondagens. Tomam medidas para mostrar trabalho feito. São peritos em encenação. Vivem obcecados com a propaganda. Anunciam a ideia, anunciam o projecto, anunciam a correcção, anunciam a revisão, anunciam o concurso, anunciam a adjudicação, anunciam a decisão prévia, anunciam a nova correcção, anunciam a primeira inauguração, anunciam a segunda inauguração... As suas decisões servem para afirmar autoridade, sem que o seu conteúdo ou a sua bondade tenham qualquer relevo. Fazem obra para criar emprego, satisfazer os amigos, colocar os correligionários e gastar dinheiro. Como disse o bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando Santo, o governo tem cada vez menos capacidade técnica e científica para preparar e tomar decisões. Os ministros confiam nos amigos, no partido e nas empresas complacentes e desprezam as opiniões técnicas e independentes. Os directores-gerais e os presidentes de institutos têm de ser de confiança política, também eles trabalham para as eleições. E o Parlamento? Poderá perguntar-se. Esse vive em sabática de competência. E em jejum de qualificações. Só nos resta acreditar no aforismo: quem governa pela propaganda, pela propaganda morre.
«Retrato da Semana» - «Público» de 20 de Janeiro de 2008

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4 Comments:

Blogger António Balbino Caldeira said...

Muito bem - aliás na senda de outras crónicas cruas e corajosas que vem publicando.

O Prof. António Barreto pertence a uma estirpe rara de homens: aqueles que falam e denunciam, sabendo que isso lhe trará o prejuízo directo da vingança e juízo de inconveniência dos detentores e servos do poder e candidatos a tal.

Sem esses homens que se distinguem na luta cívica, enquanto os promíscuos esperamna sombra, calados e servis, fazendo jeitos por acção e omissão, não pode haver recuperação real, pois a subsitutuição dos governantes será apenas uma mudança de turno sem mudança de política.

Ora, a recuperação do País para a probidade e competência de direcção do Estado precisa do alargamento das hostes dos homens de bem com responsabilidade activa, dispostos ao sacrifício cívico, porque só a denúncia que fazem, enquanto vêem bloqueados os meios de construção e desenvolvimento, permite a preparação do futuro e a reforma política inevitável. Reforma do sistema, das políticos e dos dirigentes - ou a ruptura, se a degradação do regime continuar, sem que os dirigentes actuais se mexam.

21 de janeiro de 2008 às 11:45  
Blogger Jack said...

Sou contra os ídolos, contra os insubstituíveis, contra as vénias servis daqueles que esperam com a sua subserviência obter "benesses" no futuro, para eles ou para alguém pertencente ao seu círculo familiar ou “amigacional”. Com esta retórica (!) não quero de modo algum pôr-me em bicos de pés à espera de uma salva de palmas ou de uma condecoração no 10 de Junho, a data mais bonita, para muitos, nestes últimos anos de democracia abrilesca, que tantas esperanças nos trouxe. A razão da minha “prosa” prende-se essencialmente com a forma como pretendo dizer que, António Barreto, não sendo para mim um ídolo, não sendo para a nossa sociedade um insubstituível, é sem dúvida um dos portugueses que, nestes tempos conturbados, mais tem alertado as consciências para os factos que se estão a passar e para as consequências que daí podem advir. Não vou aqui escrever um louvor à sua conduta, longe disso, já que a sua acção não é mais que um dever cívico que a sua condição de português e de sociólogo lhe impõe mas, vou escrever um desejo que espero que se realize enquanto a actual situação o justificar “que a pena lhe seja leve e a escrita não esmoreça”.

21 de janeiro de 2008 às 14:22  
Blogger Antiparasitário said...

Mais uma brilhante reflexão do Prof. António Barreto, brilhantemente intitulada. As sucessivas trapalhadas dos governos, em particular, e da classe política, em geral, têm custos: morais e éticos, que aprofundam uma grave crise de valores (subvertendo-os); económicos/financeiros como, por exemplo, o aumento da carga fiscal, a obsessão pelo défice, entre outros. Em poucas palavras: estamos perante parasitismo social (neste caso, parasitismo socrático).

21 de janeiro de 2008 às 14:53  
Blogger oliveira.r said...

Um retrato fiel do nosso país.
Curioso é que se aplica na perfeição,por exemplo,à empresa onde trabalho.
Substitue-se o Governo pelo C.de Administração,os Ministros pelos Dir.Gerais,e por aí fora,e tudo o que aqui se diz,assenta que nem uma luva.Curioso de facto.

24 de janeiro de 2008 às 14:11  

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