Ai coração, coração
ANDAMOS JÁ A VIVER com os corações uns dos outros. Devíamos deixar de correr por aí, voltar a poder fumar vários maços de cigarros por dia e beber sem restrições. Quando o nosso coração começasse a dar sinais de querer estoirar, a gente encomendava um bom coração, com pouco uso, para aí de dezoito, vinte anos, no máximo, e quando o «berro» viesse aí a gente trocava.
Ganhávamos assim, sem alardes, sem campanhas, sem sacrifícios nem correrias, um coração jovem.
Ganhávamos assim, sem alardes, sem campanhas, sem sacrifícios nem correrias, um coração jovem.
Por mim, estou totalmente de acordo. Põe-se-me apenas uma única questão, e esta é a dos sentimentos.
Eu explico.
Desde pequenino que ouço dizer que Fulano tem bom coração, que ouço murmurar «trago-te no coração», que ouço afirmar que Sicrana tem «um coração de pomba», e que a mãe dela tem «um coração do tamanho desta casa». Portanto, a questão é realmente esta - vai-me custar a acreditar que o coração é só uma bomba que, pumba-pumba, nos põe o sangue a correr pelas veias Desde que o sul-africano Christian Barnard começou a trocar corações que espero que alguém me esclareça. Falou-se em anticorpos, em aceitação, mas quanto a sentimentos, nada...
Quero dizer na minha: a gente fica com um coração novo, deitam o nosso para o balde, e depois?!
Ficarmos com as paixões do dador, os seus bons ou maus sentimentos, passamos a ficar apaixonados por quem aquele coração novo sempre bateu, passamos a odiar quem aquele coração não perdoa?
Ninguém me explica...
Pejo sim pelo não, penso que é melhor reformular pelo menos o fado e o tango, que são as canções mais cardiológicas que conheço. Mas a sério: já pensaram nisto com certeza. Como será? Já alguém perguntou a um receptor de coração transplantado:
- Ainda gosta da sua mulher? Sente a mesma coisa pelos seus filhos?
Ninguém teve coragem de perguntar isto. E deve haver uma razão para isso. Porque naturalmente que o entrevistado não responderia com sinceridade. Já imaginaram alguém, ligado aos tubos, cheio de fios, depois de tanto ter sofrido, agradecer o apoio dado por toda a família com uma declaração brutal, mas sincera, do tipo:
- Vocês não significam nada para mim. O meu amor agora é outro.
Devia ser o bom e o bonito.
Desta forma, creio que a única maneira de saber o que se passa, depois do transplante de um coração, é um repórter submeter-se a essa experiência. Se eu ainda fosse jornalista de redacção, com agenda a cumprir, e visse que me tinham marcado «Letria - coração novo», metia-me num automóvel, chegava ao hospital e dizia ao cirurgião.
- Doutor, faz favor. Mas deixe-me saber antes, com precisão, de quem é o meu coração novo.
E preparava-me. Pedia nomes de namoradas, de pai e de mãe, de patrões, de colegas e camaradas, de amigos e inimigos. E tentava perceber o que se iria passar quando acordasse. E verificaria se, de facto, tinha perdoado tudo aos meus inimigos, se já não amava quem amei, se tinha amores novos. E escrevia tudo isso numa reportagem que o jornal classificaria de sensacional e em grande exclusivo, contava tudo com muito cuidado e rigor, ainda quente, quer dizer, ligado ainda à máquina do bip-bip.
Depois, dava uma conferência de Imprensa. Reunia autores de letras, trovadores e poetas e dizia-lhes:
- Meus amigos, deixem-se disso. Não digam mais «o meu coração bate por ti». Não escrevam mais sobre o coração. O coração, meus amigos, é uma bomba hidráulica. Faz pumba-pumba e nada mais. Essa coisa da dor de corno, musical ou poética, está mas é toda na cabeça, aliás apropriadamente.
Quero dizer na minha: a gente fica com um coração novo, deitam o nosso para o balde, e depois?!
Ficarmos com as paixões do dador, os seus bons ou maus sentimentos, passamos a ficar apaixonados por quem aquele coração novo sempre bateu, passamos a odiar quem aquele coração não perdoa?
Ninguém me explica...
Pejo sim pelo não, penso que é melhor reformular pelo menos o fado e o tango, que são as canções mais cardiológicas que conheço. Mas a sério: já pensaram nisto com certeza. Como será? Já alguém perguntou a um receptor de coração transplantado:
- Ainda gosta da sua mulher? Sente a mesma coisa pelos seus filhos?
Ninguém teve coragem de perguntar isto. E deve haver uma razão para isso. Porque naturalmente que o entrevistado não responderia com sinceridade. Já imaginaram alguém, ligado aos tubos, cheio de fios, depois de tanto ter sofrido, agradecer o apoio dado por toda a família com uma declaração brutal, mas sincera, do tipo:
- Vocês não significam nada para mim. O meu amor agora é outro.
Devia ser o bom e o bonito.
Desta forma, creio que a única maneira de saber o que se passa, depois do transplante de um coração, é um repórter submeter-se a essa experiência. Se eu ainda fosse jornalista de redacção, com agenda a cumprir, e visse que me tinham marcado «Letria - coração novo», metia-me num automóvel, chegava ao hospital e dizia ao cirurgião.
- Doutor, faz favor. Mas deixe-me saber antes, com precisão, de quem é o meu coração novo.
E preparava-me. Pedia nomes de namoradas, de pai e de mãe, de patrões, de colegas e camaradas, de amigos e inimigos. E tentava perceber o que se iria passar quando acordasse. E verificaria se, de facto, tinha perdoado tudo aos meus inimigos, se já não amava quem amei, se tinha amores novos. E escrevia tudo isso numa reportagem que o jornal classificaria de sensacional e em grande exclusivo, contava tudo com muito cuidado e rigor, ainda quente, quer dizer, ligado ainda à máquina do bip-bip.
Depois, dava uma conferência de Imprensa. Reunia autores de letras, trovadores e poetas e dizia-lhes:
- Meus amigos, deixem-se disso. Não digam mais «o meu coração bate por ti». Não escrevam mais sobre o coração. O coração, meus amigos, é uma bomba hidráulica. Faz pumba-pumba e nada mais. Essa coisa da dor de corno, musical ou poética, está mas é toda na cabeça, aliás apropriadamente.
Se calhar, desligavam-me a máquina. Ou alguém indignado me pisava o tubo. Não seria de estranhar, porque se ainda ninguém falou destas coisas é porque deve haver uma razão de peso, possivelmente um contrato que se eu o denunciasse, me despedaçava o coração. Mas juro que faria de tudo isto uma campanha, nem que tivesse de transmitir em morse, com os bip-bip da máquina:
- O que o Dom Pedro mordeu foi uma bomba hidráulica, nada mais.
Possivelmente, nessa altura, faziam-me novo transplante e punham-me um coração de plástico, acabando-se tudo. Ficava vivo, mas teso que nem um carapau, com um bip-bip muito certinho.
Pelo sim pelo não, o melhor é utilizar o método dos dois corações. Porque ou nada disto é verdade e sempre é melhor ter um coração sobressalente e continuar ligado ao nosso coração de origem, ou então é mesmo verdade e a gente deve pedir ao médico que, já que nos vai substituir o músculo cardíaco, faça o favor de nos arranjar um coração com pêlos, que a vida e este mundo não estão para corações fracos.
- O que o Dom Pedro mordeu foi uma bomba hidráulica, nada mais.
Possivelmente, nessa altura, faziam-me novo transplante e punham-me um coração de plástico, acabando-se tudo. Ficava vivo, mas teso que nem um carapau, com um bip-bip muito certinho.
Pelo sim pelo não, o melhor é utilizar o método dos dois corações. Porque ou nada disto é verdade e sempre é melhor ter um coração sobressalente e continuar ligado ao nosso coração de origem, ou então é mesmo verdade e a gente deve pedir ao médico que, já que nos vai substituir o músculo cardíaco, faça o favor de nos arranjar um coração com pêlos, que a vida e este mundo não estão para corações fracos.
Ninguém me diz se isto acontece de uma maneira ou de outra. Portanto, não tomem estas minhas palavras para além daquilo que elas verdadeiramente representam: um cronista de jornal a escrever em voz alta, desinibidamente, com sinceridade, de todo o coração.
Lisboa, 1987
Etiquetas: JL
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home