18.1.08

Vencer na vida

Por Antunes Ferreira
SE ME PERMITEM O DESABAFO, esta é a melhor estória que trouxe de um mês inebriante que passei entre Novembro e Dezembro, em Goa. Faço, para já, uns prolegómenos que peço o subido obséquio de aceitarem. Minha mulher é de Raia, concelho de Salcete, Margão e diz que eu sou mais goês do que ela. Com o pedido de desculpas à falecida maternidade Bensaúde, ao tempo ali à avenida de Berna, penso que sim. Alfacinha – pelos vistos, só por erro geográfico.
Não me canso de admirar e encomiar o encanto daquela terra. São as praias, no Índico, com a água a 26º - tomei banho em Varca, ainda que sem termómetro, mas posso garantir que nem para almoçar me apetecia sair daquele bendito mar. E almoçar por ali, nem sei se vos diga, se vos conte. Adiante. São as igrejas portuguesas, espalhadas pelo território, caiadas à maneira tradicional. São os templos hindus que têm vindo a aumentar, pelo menos desde 1980, em que pela primeira vez me desloquei ao paraíso.
Eu sei lá que mais. A cozinha goesa, uma mistura sábia de séculos entre a base lusitana e os temperos locais - o gengibre, o tamarindo, a canela, a malagueta verde, o cravinho, o brindão, a noz-moscada, a mostarda, o cardamomo, os cominhos, a curcuma, o açafrão, a pimenta e outros – é uma delícia de comer e chorar por mais. Um dia, se assim quiserem, volto ao tema.
Ora muito bem. O bairro mais chique de Panjim é o Altinho. Como o nome indica, fica na parte mais elevada da capital. A par com vivendas recentes, encontramos casarões tipicamente coloniais, as suas varandas a envolvê-los, ternamente, nunca a oprimi-los, está bem de ver. Nos quais se podem ver as famosas espreguiçadeiras, para apanhar a brisa da tarde pré-natalícia.
São os locais ideais para a prática de uma arte que, por cá, parece ter caído em desuso e ali é cultivada até ao infinito: conversar. Normalmente bebericam-se uns copos a acompanhar as charlas. As mais das vezes esquecidos pelo interessante dos assuntos, pela verve dos participantes, pelas tardes morenas, pelo Mandovi que se alonga, manso, lá em baixo.
Foi numa delas que conheci a Frederika. Assim, com k. Frederika Menezes. Frederika Raquel Menezes. Pais médicos, o Zito e a Ângela. Nascida a 30 de Setembro de 1979. Com paralisia cerebral. Um drama para ela – e para os progenitores. Paraplégica quase total. E digo quase, porque ela escreve com dois dedos no teclado do computador. E escreve bem.
Fez a escola com a normalidade possível, pela qual lutou e venceu. Apoiada pela família, mas ganhou por ela própria. E, aos 13 anos, descobriu que gostava de escrever. Continua a gostar. Começou pelos poemas, passou à prosa, que foram aparecendo em revistas e jornais locais e nacionais. A Índia olhou para ela. E ela seguiu em frente.
Fala Konkanim, Hindi, Inglês e Português. Um espanto. Por vezes tem dificuldades em articular as palavras, moderar os sons. Com essas e outras, pasme-se. Já escreveu dois livros. Em 1998, uma colectânea de poemas, intitulada The Portrait. Um deles foi seleccionado para publicação numa antologia poética – Fire in the Heart. E em 2003, editou em prosa, The Pepperns and Wars of the Mind. Pelo caminho, em 99 foi galardoada com o Junior Citizen Arward pela Jaycees Júnior Chamber if Panjim. Tem um terceiro texto pronto. É obra.
Muito conversámos, muito nos descobrimos, muito nos rimos com o que lhe contei com alguma piada. Não é simpática – é simpatiquíssima. Hoje, escrevemo-nos por e-mail e falamos pelo msn. Digo-lhe que namoramos, com a necessária anuência da minha mulher e sua patrícia. Posso ouvir as suas gargalhadas nas teclas. Fiquei a adorá-la. Trouxe, até, o seu livro The Pepperns para ver se algum editor estará interessado nele, obra de uma jovem de 28 anos que soube, e sabe, vencer o desafio que a vida lhe atirou.
E pronto. Esta é uma crónica verdadeira e sentida. Daqui, como nos bilhetes tradicionais, envio um beijo à Frederika. Minha namorada, com a autorização da Raquel. Um dia destes, volto a Goa e vou dar-lhe mais um - sem ser pela Internet.

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