2.1.08

Talvez ternura

Por Baptista-Bastos
Acusam-me de mágoa e desalento, / como se toda a pena dos meus versos / não fosse carne vossa, homens dispersos, / e a minha dor a tua, pensamento!
Carlos de Oliveira - Colheita Perdida
NO REMATE DE CADA ANO e no começo do outro sempre se insinua, na derrocada das nossas pessoais esperanças, um ténue fio de luz. Apesar de tudo, acreditamos que as coisas irão melhorar. Eu próprio pertenço a essa falange. Alguns pios leitores avaliam as minhas prosas como as de um homem descoroçoado e triste. Há alguma verdade no árduo peso desta avaliação. Pertenço a uma geração e a uma época que talvez alimentassem sonhos desmesurados. E nada pior do que despedaçar o sonho dos homens.
É hábito perguntarem-me sobre os meus desejos para o ano novo. Disse, por exemplo, ao Correio da Manhã, a frase fácil: "Que o PS fosse socialista." É fácil, mas é o que penso. Embora avisados "politólogos" me advirtam de que é impossível o Partido Socialista ser socialista, não só pela simples razão de nunca o ter sido, como pela lacónica circunstância de nunca o ter querido ser. Aliás, o desenvolvimento, a civilização, o mercado livre impedem a realização desse infausto anacronismo. Já não há socialistas; há pragmáticos: a maravilha elástica que ministra intensas alegrias aos abjurantes do esquerdismo e aos comunistas contritos, alvoroçadamente convertidos aos prestígios do capitalismo.
Com rigor, porém, penso que seria bom renascer em todos nós um pouco de ternura. Que a compaixão e a bondade não andassem por aí, desempregadas, e também elas tontas e aflitas, por tão sós. Que a felicidade fosse possível. Que tão poucos não tivessem tanto, e tantos não tivessem tão pouco. Que a paz interior não fosse, apenas, resultado da solidão, mas a certeza de uma verdade temporal. Que a necessidade de verdade se transformasse numa urgência diária. Que a sinceridade constituísse a vontade de se ser verdadeiro. Que a vida não se traduzisse uma infusão de falsos valores e de promessas de eternidade duvidosa, mas sim que o conhecimento tivesse a conformidade das exigências sociais e éticas.
A minha geração mergulhou nas lutas do seu tempo e acreditou no futuro como quem crê no céu. Questão de fé, bem entendido. Há algo de místico neste bulício irracional. René Char, um dos meus poetas amados, gravou o que poderá ser a nossa carta distintiva: "Só lutamos bem por causas que nós próprios modelamos, e com as quais nos queimamos, ao com elas nos identificarmos." Apesar de tudo, pios leitores, de uma forma ou de outro modo, já passámos por coisas piores. Muitos de nós são sobreviventes de aparentes supremacias que pretendiam transcender a vontade dos homens.
Sobreviventes: não vencidos.
«DN» de 2 de Janeiro de 2007

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1 Comments:

Blogger joshua said...

É fundamentalmente este o Baptista-Bastos que eu REconheço e em cujos sucessivos conjuntivos me revejo.

Abraço do joshua
PALAVROSSAVRVS REX!

2 de janeiro de 2008 às 13:59  

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