15.2.08

Desconcerto educativo

Por Carlos Fiolhais
SE FOSSE POSSÍVEL que um governo se lembrasse um dia, por aversão às artes, de acabar com o ensino da música, não faria muito diferente do que este governo se prepara para fazer. De acordo com o novo plano do ensino da música, surgirão as seguintes mudanças:
1. Extinção do ensino musical especializado no 1.º ciclo.
2. Mesmo para os maiores de 10 anos, os conservatórios só irão oferecer ensino de música em regime integrado e não supletivo.
A primeira medida só por si é o fim do ensino musical especializado porque as crianças do 1.º ciclo do ensino básico deixam de poder frequentar o conservatório. Ora, na música em particular é de pequenino que se torce o pepino. Tal significa o desaparecimento a breve prazo dos instrumentistas portugueses, pianistas e violinistas, flautistas e clarinetistas, pois, para se ser muito bom num instrumento, é preciso começar cedo a aprendê-lo. Com esta lei, se o leitor quiser que o seu talentoso filho de seis a nove anos aprenda um instrumento, só mesmo no ensino particular (pagando bem mais, claro, do que no conservatório).
A segunda medida não é melhor. A maioria dos alunos do conservatório está no regime supletivo porque, dada a exigência da carrreira musical e o escasso número de oportunidades profissionais nessa área, não querem ficar limitados muito cedo à opção pela música. A decisão sobre o seu futuro poderá, naturalmente, levar algum tempo a amadurecer. E eles podem seguir outra carreira sendo bons músicos amadores.
Diz o Ministério da Educação que, ao mesmo tempo que reforma os conservatórios, quer fazer chegar a música a todas as escolas, na forma de actividades extra-curriculares. À primeira vista, parece uma óptima ideia. Música para todos e não apenas para meia dúzia? Quem não concordará? Mas trata-se de uma enorme demagogia que só não surpreende por já estarmos habituados a esse tipo de dislates. Essas actividades ninguém sabe o que são mas devem ser uma brincadeira para ocupar alguns tempos livres. Seria o mesmo que substituir os professores de língua portuguesa em tempos lectivos por contadores de histórias em tempos extralectivos. Há quem diga que o Ministério pretende, com o esvaziamento dos conservatórios, arranjar mão-de-obra para as tais actividades musicais nas escolas. Será assim? De facto, as crianças e jovens que estão nos conservatórios são ricos mas apenas no seu talento, pois passaram rigorosas provas de admissão e praticam com rigor: eles farão parte da nossa elite artística. Aposto dobrado contra singelo que essas actividades extra curriculares não vão ter exigência nenhuma, pois nem sequer haverá exames.
O documento de avaliação do ensino artístico foi, para nosso espanto, feito por um especialista em educação matemática, pelo que podemos presumir que os documentos do ensino da matemática foram feitos por professores de música. É um completo desconcerto! Vendo bem, o que se está a fazer no ensino das artes é o que já se fez no ensino das ciências (vide a desvalorização da física, que já está a conduzir ao fecho de cursos superiores dessa disciplina) e das letras (vide o ataque à filosofia no secundário). A responsabilidade não é só do actual governo, são governos sucessivos que conduziram ao evidente estado de laxismo. E, se o governo, nesta área, é o que é, a oposição não se ouve. A oposição são os alunos e professores que fazem concertos à porta do Ministério e os pais que fazem petições na Internet.
É preciso conservar o que os nossos conservatórios têm de melhor. Reforçá-los em vez de os diminuir (o de Coimbra está há anos em instalações precárias, com o novo edifício por construir). Eles são ainda um reduto de qualidade num sistema educativo que desdenha da qualidade. Essa de dar música a todos é “dar-nos música” a todos: significa a uniformização pelo mínimo. Parece que é tirar aos ricos para dar aos pobres, mas é ao contrário. Tira-se aos pobres algumas das oportunidades que os seus genes e o seu esforço lhes davam. E os ricos terão sempre o privado e o estrangeiro.
«Público» de 15 de Fevereiro de 2008 - c.a.a.

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2 Comments:

Blogger Blondewithaphd said...

Boa! Já não temos pensadores e os cientistas fogem daqui. Agora ficaremos sem artistas musicais. É bom!
Eu, que levei com seis penosos anos de solfejo com o Maestro Guttenberg, para ser uma naba a tocar sax, lá gostaria que os meninos pequeninos me superiorizassem em tão excelsa arte? Claro que não! E música lá faz bem a alguém? É como pensar! Isso é preciso para quê?

16 de fevereiro de 2008 às 10:40  
Blogger hkt said...

As escolas são cada vez mais armazéns de crianças obrigadas a permanecer no espaço escola "de sol a sol".
A "escola a tempo inteiro" é um disparate pegado. Não foram criadas condições, nem espaços, nem horários, nem houve sequer bom senso.
Vejamos durante a escola primária os meus filhos puderam frequentar a piscina municipal em horário lectivo. Actualmente isso seria impossível. Porquê? Porque o tempo necessário para o transporte, vestir/despir + natação, excede o tempo semanal previsto para a prática de educação Física...
Continuamos a brincar ao ensino em todas as áreas.

16 de fevereiro de 2008 às 23:53  

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