A Quadratura do Circo

O atendimento
Por Pedro Barroso

*

(Dramaturgia ad hoc de um caso real ocorrido no Hospital de Leiria no ano de graça de 2006, ano e meio antes do famoso episódio de Alijó).

*

- Nome de pai e mãe?
- O meu pai era da Guarda.
- Eu não lhe perguntei a profissão, perguntei o nome!
- Ele não era da Guarda, só era da Guarda. Calhou.
- Sim o nome faz favor…
- Bom, ele era conhecido pelo Zé Peniche, mas ele era da Guarda, já lhe disse.
- Quero lá saber se era da Guarda ou de Peniche, homem, eu quero é o nome dele!
- Bote Zé do Samouco, pronto!
- Oh senhor …mas ele era Samouco ou Peniche?
- Oh menina já lhe disse que nem uma coisa nem outra, carago. Ele era da Guarda.
- O nome, senhor, o nome!
- Eu sou António da Purificação. Ai… cheio de Dores…
- Não. Tenha paciência. Ainda não me deu os nomes de pai e mãe.
- Então a minha mãe era a Joaquina Rabicha.
- Rabicha?! Mostre lá o seu BI faz favor!
- O meu quê?!
- O Bilhete de Identidade!
- Ah isso… nunca trago comigo, que posso perder…
- Mas então como é que eu faço esta ficha, meu Deus?
- Isso não sei. Eu estou a dar-vos os nomes todos que me pedis. O do pai era Samouco e da mãe era Rabicha! Que mais quereis? Chiça… estou cheio de dores, porra!
- Bom… Naturalidade?
- Picha, minha senhora.
- Donde? O senhor está a brincar comigo?
- Eu não, minha senhora. Sou da Picha, sim senhor, com muita honra! Concelho de Pedrogão Grande. Agora despache-se mas é, que eu estou cheio de dores, acho que tenho um trambico aqui mesmo e depois tem de levar na maca. Estou a avisar…
- Oh homem… eu tenho de preencher o formulário… Tem alguém consigo?
- Tenho a minha mulher, a minha filha, coitada, que foi desonrada quatro vezes e os quatro netinhos… Tenho também umas ovelhitas mas isso é coisa pouca. Ah… e uma vaca!
- Eu quero lá saber da vaca, senhor…
- Mas quero eu, olha que porra! Preciso da vaca para viver, ora essa!
- Não é isso. Agora! Se tem aqui alguém que viesse consigo?
- Eu vim com o João Pequeno. Ele é que me encontrou na valeta caído e me trouxe para cá. Mas já foi embora, que ele tinha umas couves para dispor e não podia estar aqui muito tempo…
- Então não temos ninguém para avisar, no caso de ficar internado?
- Avisem na Picha, que aquilo é pequenino toda a gente se conhece…
- Na Picha?! Ah, pois!... O senhor tem doenças?
- Nah! Essa sempre funcionou bem, graças a Deus
- Desculpe, homem, outras doenças, tem?
- Então… olha que pergunta! Estou aqui todo fodido dum braço… não vedes?
- Não é isso. Se você tem tido algumas doenças anteriores? Por exemplo, alergias?
- Alegrias? Poucas… que tem sido sempre uma vida de muito trabalho, sabe...
- Sim, não é isso, deixe lá… Olhe, comprimidos, toma?
- Só tomo uma coisa que o Alberto me receitou, diz que faz bem à bertoeja.
- Como é que se chama o remédio?
- Oh isso agora… sei lá…
- E como é que se chama o médico que lhe receitou isso?
- É o Alberto. Mas não é médico, é barbeiro.
- Meu Deus… isso não conta, então… Ouça: você tem ADSE?
- Tenho lá o Zé, sim, mas esse ficou em casa. É o meu neto mais velho, é o que ajuda mais.
- ?! …quê? Oh homem de Deus! Estou a perguntar se tem Caixa?
- Eu tenho uma porrada delas, claro que tenho! Até foi por causa da caixa do tractor que me virei! Mas para quê é que vossemecê quer agora uma caixa? Precisa de guardar alguma coisa, assim de repente? Olhe que eu estou a trambicar-me todo, carago! Já estou a ver tudo verde... Virei o tractor caí com o braço virado para dentro e estou cheio de dores!...
- Pois… mas você vai ter de ir para Coimbra que aqui não tenho Ortopedia e você deve estar com o braço partido, percebe?
- Foda-se para isto, com sua licença!
- Gente bruta e mal educada é o que é...

(Com a ajuda do INEM, dos Bombeiros Voluntários da Picha e de outras entidades caridosas, este episódio continua dentro de 3 horas, na melhor das hipóteses, graças a Deus e ao Serviço Nacional de Saúde).