12.2.08

Diz que é uma espécie de chantagem

Por João Miguel Tavares
ESTAVA EU ENTRETIDO a mastigar o jantar quando Manuel Alegre irrompeu pelos telejornais das oito com aquele ar de quem acha que o País está necessitado de um novo 25 de Abril, a ameaçar com voz cavernosa: "Vocês não me desafiem, que eu vou às urnas." Fiquei logo com um naco de vitela entalado no esófago: é impressão minha ou o bardo do Mondego decidiu chantagear José Sócrates em horário nobre? Ai decidiu, decidiu. Alegre entende - e entende bem - que os níveis de socialismo no Partido Socialista desceram abaixo do aceitável, que este PS já não sabe a PS, e com o seu perfil profético e a fama de consciência da esquerda está cheio de vontade de fazer no Largo do Rato o mesmo que Jesus Cristo fez nas bodas de Caná: transformar a água em vinho.
Sócrates, evidentemente, que gosta mais de Vitalis do que de Barca Velha, deve ter começado a ver a vida a andar para trás. O que faltava agora era ele acabar refém de Alegre para garantir mais quatro anos à frente do País. Porque uma coisa é Sócrates sentir-se obrigado a dizer em todas as entrevistas que Manuel Alegre é uma das suas referências na literatura; outra coisa é ser obrigado a fingir no dia-a-dia que ele é uma das suas referências na política. Recorde-se que durante a recente remodelação governamental surgiram notícias a garantir que Alegre teria tido um papel decisivo no afastamento do ministro da Saúde. Na altura, eu não quis acreditar. Agora, já não ponho as mãos no fogo - e, quando se dá um dedo à "consciência da esquerda", ela acaba a pedir o braço. É esse o ponto em que estamos.
E como em tudo na vida, há um lado positivo e um lado negativo. O lado positivo é que até a mais alienada das almas reconhece que a despolitização da política em Portugal foi muito mais longe do que devia, e que toda a gente teria a ganhar se PS e PSD parassem de fingir que são diferentes e começassem realmente a ser diferentes. É um ponto em que Manuel Alegre tem toda a razão: o "pensamento único" infecta a democracia e a gestão musculada de Sócrates à frente do Partido Socialista (e do Governo) tem deixado no País o cheiro desagradável dos quartos mal arejados. Mas a investida alegrista encerra um perigo óbvio: é que à esquerda de Sócrates só há poesia ideológica e à sua direita há um PSD desvairado, nas mãos de Menezes e Santana. Por mais irritante que Sócrates seja - e demasiadas vezes é -, nada disto se assemelha a um mínimo de alternativa de Governo. Montado nos 20% das presidenciais, Manuel Alegre mete medo a Sócrates, e tendo em conta o tamanho do seu ego isso deve diverti-lo muito. Mas ninguém se lembraria de dar ao Grilo Falante o papel principal de Pinóquio.
«DN» de 12 de Fevereiro de 2008 - c.a.a.

Etiquetas:

7 Comments:

Blogger tourais said...

Prefiro mil vezes a "poesia ideológica" - este termo parece cunhado por um maoísta - da ala esquerda socialista, do que o cinzentismo subserviente ao poder económico (que é de onde lhe chegam os generosos financiamentos) em que está transformado o aparelho do PS.

12 de fevereiro de 2008 às 15:50  
Blogger FranciscoSantos said...

Claro que ninguém quer um grilo falante a fazer de pinóquio, até porque o papel já tem dono e uma série de clones à espera de vez.
Basta ver a desfaçatez com que "faltam à verdade"...

12 de fevereiro de 2008 às 18:06  
Blogger Cosmo said...

Grilo falante? Não!
O que todos nós precisamos é de um papagaio blogueiro!

12 de fevereiro de 2008 às 21:19  
Blogger Ti said...

Quanta agressividade para com um homem que teve 20% numa votação nacional!
Concordo que se critique, mas chamar nomes (ainda por cima despropositados) a um politico com tamanho curriculo, parece-me que pode ser meio caminho andado para legitimar a mesma critica em sentido contrário.

13 de fevereiro de 2008 às 09:12  
Blogger Ti said...

O Sócrates e o Manuel Alegre parecem-me complementares, pelo que um diálogo frequente entre ambos parece-me que pode ser muito produtivo.
Como neste momento o poder é de Sócrates, é com muito agrado que vejo o crescer de importância de Manuel Alegre.

Não acho especialmente brilhante a ideia de Manuel Alegre com um papel decisivo nos destinos do país, mas também Sócrates tinha uma aura de politico débil antes de ser Primeiro-Ministro; Ora veio a provar-se exactamente o contrário.
Assim sendo parece-me que Manuel Alegre tem muito mais legitimidade do que a grande parte dos agentes politicos para falar precisamente de politica.

13 de fevereiro de 2008 às 09:42  
Blogger César said...

"ESTAVA EU ENTRETIDO a mastigar o jantar quando Manuel Alegre irrompeu pelos telejornais das oito com aquele ar de quem acha que o País está necessitado de um novo 25 de Abril, a ameaçar com voz cavernosa: "Vocês não me desafiem, que eu vou às urnas." Fiquei logo com um naco de vitela entalado no esófago: é impressão minha ou o bardo do Mondego decidiu chantagear José Sócrates em horário nobre?" -> é por causa destas coisas que cada vez mais estou a ficar fã do João Miguel Tavares... só não copio tudo na íntegra outra vez porque até parecia mal.

abraço

13 de fevereiro de 2008 às 11:35  
Blogger ferreira said...

mas também Sócrates tinha uma aura de politico débil antes de ser Primeiro-Ministro; Ora veio a provar-se exactamente o contrário.

Exactamente o contrário de "político débil" é "débil político".
De acordo.

13 de fevereiro de 2008 às 23:45  

Enviar um comentário

<< Home