10.2.08

Um deserto de abundância

Por Nuno Brederode Santos
SE ALGO ENSOMBRA o serão criativo do bom colunista é a aventesma branca da falta de assunto. Parece que a cabeça dele volteia num espaço sem gravidade e os olhos cegam num desfile sem propósito pelas letras do teclado. Comigo sucede pior. Não há vontade que resista ao excesso de temas. Pior do que o deserto é o Tokyo by Night: milhões de luzes, néons e cores piscam ao mesmo tempo e atraem-nos na vertiginosa viagem de um carrossel desgovernado. Não há pausa para a serenidade, a contemplação, a inteligência. Felizes os que recorrentemente se queixam da pasmaceira viscosa em que vivemos. Daí que hoje o bom comentador da conjuntura esteja nas suas sete quintas, enquanto eu estou travado pelo pasmo e por dedos gelados que não escrevem.
Poderia propor-me comentar a entrevista de Alípio Ribeiro. Eu, que lhe apreciava a discrição, teria de começar por situá-la no indesejável contexto do vedetismo dos altos funcionários do Estado: o civil servant não é uma pop-star e deixar instalar essa cultura é provavelmente uma reforma tão instante como aquelas de que se fala. Depois, manifestaria estranheza por um homem do Ministério Público, no decurso (não digo que no exercício) das suas funções à frente da Judiciária, comente publicamente um processo em andamento, sabendo que o condiciona, se é que o não mata. E di-lo-ia com o à-vontade de quem não se deixou extasiar pelas constantes fugas de informação (ou intoxicações informativas), nem ajudou nas patrióticas versões da festa dos swingers ingleses ou da ocultação do cadáver pelos pais da menina, nem foi condicionado pelo jornalismo do The Sun. Mas Alberto Costa deu-lhe cobertura política e vai, nesta semana, ao Parlamento, para dar explicações. Embora com grande cepticismo, farei como Laborinho Lúcio, que, com assinalável equilíbrio, sugeriu aguardar uma explicação que realmente explique.
Poderia carpir o destino desses novos condenados da Terra que são os administradores (e, necessariamente, alguns quadros) das Estradas de Portugal, a ser verdade que Almerindo Marques abre as reuniões do Conselho às sete da manhã e, segundo "A Vespa" do DN, encerra-as para lá das nove da noite. A única coisa que não tinha ocorrido aos nossos gestores (públicos ou privados) era a de terem abraçado um sacerdócio.
Poderia assinalar que bem fez o deputado António Galamba em pedir ao Tribunal Constitucional que discriminasse e identificasse os deputados que alguma vez solicitaram um regime de sigilo para as suas declarações de rendimentos. Claro que o Tribunal recusou e não é criticável por isso. Mas ficámos a saber que, afinal, em doze anos foram doze os que o fizeram. E nenhum foi atendido. Mas não ficava nada mal aos deputados repensarem o dispositivo que o permite.
Poderia ocupar-me da imparável progressão de Santana Lopes no PSD. Como Roma perante a marcha dos elefantes de Cartago, Menezes não consegue travar o avanço paquidérmico da tão celebrada "colaboração institucional". Após a tentativa, infantil e amadorística, de Ribau Esteves, com a falhada assessoria de imprensa junto da bancada parlamentar, o Presidente do partido não encontra agora espaço, físico e cronológico, para incendiar in loco, o país. Esbarra na sobrecarregada agenda das "presidências abertas" do líder parlamentar. Uma lição para aqueles que, como eu, só pensaram que Santana teria, no Parlamento, tribuna bastante para ensombrar nos media um chefe partidário que não é deputado. Mais criativo e mais ambicioso, Santana aposta que também o pode fazer no terreno. E o pior é que, para quantos, no PSD, pensam que Menezes já não vai lá, Santana tem alguma razão: se não for ele, será alguém de fora da actual direcção a tentar a sorte antes das eleições (ou, mais avisadamente, antes da formação das listas). Já aqui escrevi que não entendia porque é que a "colaboração" era "institucional". Agora já nem entendo porque é que é "colaboração".
Haveria mais temas de circunstância. Não os refiro porque já não posso comentá-los. O certo é que eles abundam: isto não é o Paraguai ou a Groenlândia. E a abundância desertifica o universo do comentador. Tenho outra folga nos meus convívios. Sempre fui um homem de tertúlias, isso mesmo a que o Tierno Galván chamou "a versão sedentária da aventura". Por isso, na minha tertúlia habitual, passamos o tempo a discutir o Sarkozy, o Kosovo e as primárias na América.
«DN» de 10 de Fevereiro de 2008

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