17.2.08

A verdade sobre a morte de Trotski

Por Nuno Brederode Santos
VÃO TRÊS DÉCADAS e eu não me tornei mais novo. Mas, nessa altura e por aberrante que pareça, a minha experiência de escrever em jornais cingia-se praticamente a escrever para a censura tanto ou mais do que para o leitor. Corria um qualquer aniversário de Humberto Delgado. E eu escrevi na Luta sobre a efeméride. No texto, falava de uma pessoa hoje já falecida- que, não sendo necessário, também não me parece muito elegante nomear. Fora um pilar do antigo regime (até ao fim, renda-se-lhe essa homenagem) e eu referia-o como tendo encetado a perseguição "administrativa" a Humberto Delgado, à qual se teria seguido a perseguição "política e criminosa" que conduziria o general à morte (mas esta tendo já por protagonistas Salazar e a PIDE). Nada disto era ousado: os factos eram tidos por comprovados em qualquer parte do mundo; só por cá é que, mexendo com pessoas vivas, ainda podiam revestir algum melindre.
O visado respondeu (e o jornal publicou). Considerava o texto ofensivo da sua honorabilidade, pois não tivera qualquer envolvimento no assassínio do general. E eu tive de replicar, pois não o acusara de tal: as culpas administrativas, políticas e criminais estavam devidamente assinaladas e imputadas. Mas como ainda se viviam tempos de sistemática fuga às verdades históricas, não resisti a uma traquinice: e não só o isentei da morte de Humberto Delgado, como o ilibei de vários outros grandes crimes do século. Com particular detalhe para o assassínio de Trotski no México. Relembrei que a prova histórica da culpa de Ramón Mercader estava feita e que, além do mais, eu sabia que, na data do hediondo feito, o visado tinha quatro anos e estava num piquenique familiar em Arraiolos.
Esta explicação parece ter tido o condão de o irritar mais e ele logo declarou à agência de informação (creio que era a ANOP) a sua decisão de processar o signatário das prosas e o jornal. Penso que o José Pedro Castanheira - então chefe de redacção e uma das raras pessoas que conheço cuja honestidade intelectual faz mais afectos que rancores - se lembrará do episódio.
Não estando embora muito intimidado, embaraçava-me a ideia de o jornal ter de responder em tribunal a meu lado. E foi então que, em conversa com o Vítor Cunha Rego - o florentino tarimbeiro de todas as tarimbas - ele me disse: "Estás doido? É claro que ele não vai processar nada nem ninguém. Primeiro porque dava ocasião a que se fizesse, em democracia, o processo dele. Depois pela risota nacional que era o teu advogado a demonstrar em juízo a inocência dele na morte do Trotski." Claro está que o Vítor teve razão e nunca mais ouvi falar do caso. A ameaça fora apenas a solução mais expedita para sair, com voz grossa e cabeça levantada, de um embaraço. Foi um desafio para duelo de honra, esbofeteando com luva e embarcando para a Austrália antes do trato das armas. Conhecida a lentidão da justiça da época e a memória efémera da opinião pública, o tempo mataria a questão. Como matou.
Só que a lentidão da justiça ainda aí está e a efemeridade da memória não registou melhoras entretanto. É certo que já vamos olhando com um pé atrás o carpido de alguns que, conhecidos e desmascarados, procuram ganhar os favores populares e intimidar os agentes judiciais, bramando uma virginal inocência e ameaçando com pedidos de indemnização (que agora e durante algum tempo podem causar alguns receios): ainda recentemente, num assunto futebolístico, assisti a um tal comício. Mas pouco ganhamos com isso, enquanto os genuínos inocentes, perante a ideia de carregarem às costas as cruzes da suspeição durante anos sem fim, não tiverem outro remédio senão protestar a sua inocência e, para a tornarem credível, anunciarem pedidos de indemnização.
Dêem-se as voltas que se derem e por crucial que seja fazermos essa distinção, ela, hoje por hoje, não é possível. A indignação dos inocentes não se consegue distinguir com nitidez do descarado calculismo dos culpados. E a primeira resposta para o problema, a primeira condição para uma justiça operante e efectiva, é, como toda a gente entende, a prontidão. O tempo é vida nos seres finitos. Mas à justiça voltarei um dia destes: não na óptica de juízes, delegados do Ministério Público, advogados ou agentes de investigação criminal, mas na mais simples e mais importante, que é a do cidadão. Que não tem nenhum interesse corporativo a acautelar.
«DN» de 17 de Fevereiro de 2008

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1 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Normalmente, face a uma acusação grave, um inocente fica desvairado, enquanto um culpado sorri e pergunta: «Tem provas?».

Hoje em dia, tempos uma variante: mesmo que haja provas factuais (escutas, etc), o acusado defende-se com argumentos processuais, e não dizendo-se inocente.
Os seus advogados argumentam que as escutas não foram validadas por um juiz - ou coisas assim.
E o certo é que não se têm dado mal com isso. Depois de o tribunal os "inocentar", 'ai de quem' os considerar culpados!

17 de fevereiro de 2008 às 14:37  

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