2.7.08

Anjos e Demónios

A PROPÓSITO do revoltante episódio ocorrido no tribunal de Santa Maria da Feira, algumas pessoas dizem que, sendo os juízes "órgãos de soberania", não deveriam insurgir-se contra as condições degradantes em que exercem o seu trabalho (muito menos suspendê-lo), devendo continuar a julgar - até debaixo de água, como dizem os brasileiros.
Ora isso faz-me lembrar uma velha história que, mesmo que não seja verídica, é bem apanhada:
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CONTA-SE que, em tempos que já lá vão, um arquitecto pouco experiente foi encarregado, pelo papa, de projectar um edifício para altos dignitários eclesiásticos. Esmerou-se o mais que pôde, entregou o seu trabalho com o nervosismo que se imagina, e esperou a apreciação de tão ilustre cliente.
Ora, para seu espanto, a resposta chegou sob a forma de uma pergunta, tão simples quanto enigmática. Numa nota manuscrita, podia ler-se, apenas:
«São anjos?»
Embaraçado por ver o seu trabalho rejeitado (e, mais ainda, por não perceber porquê), o pobre homem deu voltas à cabeça, tentando adivinhar o que o sumo-pontífice quereria dizer. Por fim, alguém lhe explicou: é que, no seu projecto, esquecera-se de prever retretes!
Ora, da mesma forma que tão ilustres cavalheiros, apesar de viverem quase de-braço-dado com a Divindade, continuavam a ter necessidades terrenas, também os nossos juízes, por muito "órgãos de soberania" que sejam, são seres humanos que precisam de protecção física - para já não falar de condições mínimas de dignidade para exercer as funções que o Estado lhes atribui.
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NOTA: Sabe-se que, numa percentagem que oscila entre os 82 e os 90%, os nossos tribunais, mesmo quando não estão a cair aos bocados, não têm video-vigilância, nem controlo de entradas, nem detectores de metais, nem segurança permanente. No limite, é possível ir para uma sala de audiências armado! Sabe-se, também, que são frequentes roubos no seu interior - e até agressões, nomeadamente de testemunhas. E - pior ainda - há registos de mais 16 casos semelhantes ao que agora parece ter sido a gota de água.
Sabe-se isso tudo, e há muito tempo, pelo que não me parece curial ridicularizar o protesto dos juízes ou - como fez Alberto Costa e mais um senhor cujo nome não retive - quererem-nos convencer que se "trata de um caso pontual" e, portanto, desprovido de importância. Não só tem importância, sim, como, por este andar, em breve tais casos deixarão de ser tão pontuais como isso.

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11 Comments:

Blogger Jack said...

Gostei deste post. Se os juízes por serem órgãos de soberania não precisam de dignidade nas suas funções, nem protecção policial ou outra, então que diremos dos nossos governantes, eleitos pelo povo. Claro que estes, por maioria de razão, deviam dispensar o regimento de seguranças que os acompanha para todo o lado. Por esta forma de pensar, é que as coisas atingiram o ponto em que estão, aqui em Portugal. Mas, todos nós sabemos, que estes "modernaços", se estivessem na oposição não havia quem os calasse em defesa dos senhores juízes, e das condições em que a tutela os obrigava a trabalhar. A política do betão fazia esquecer os mais elementares direitos daqueles que trabalham, etc., etc. Lembram-se daqueles que estavam no Terreiro do Paço ao lado dos polícias, na célebre manifestação dos secos e molhados? São os que hoje lhes levantam, ou mandam levantar, processos dsciplinares, por razões bem menos gravosas. E assim vão os tempos ...

2 de julho de 2008 às 17:29  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Há alguns anos, quando ainda estava no activo (como Chefe de Projecto numa empresa portuguesa de engenharia, muito conhecida), fui mandado para o Congo-Brazaville no seguimento de uma cruenta guerra-civil que destruíra várias instalações eléctricas que era preciso recuperar.

No dia da minha partida rebentaram mais distúrbios, do lado de lá do rio, no Congo-Kinshasa, mas fui.

Quando cheguei, tudo ainda estava fumegante, havia soldados armados por todo o lado, e o chão pavimentado com cápsulas de projéctil.

Fiz o que tinha a fazer, protegido por soldados armados de metralhadora, mas nunca me esquecerei do total desinteresse que a hierarquia mostrou em relação à minha segurança.

Também tive de ir por várias vezes à Argélia, no auge do terrorismo.
No dia em que lá cheguei pela primeira vez (fui várias), tinha acabado de haver um atentado à porta do hotel, num mercado, com dezenas de mortos.

Pois o que mais me revoltou foi, mais uma vez, a completa insensibilidade da administração da empresa, quando eu (e outros colegas) pedimos mais segurança.
Pior: diziam-me que se tratava de casos pontuais e que o terrorismo, na Argélia, já acabara!

Acabei por estar um mês com baixa psiquiátrica e, pouco depois, negociar a saída da empresa.

2 de julho de 2008 às 18:01  
Blogger R. da Cunha said...

Concordo parcialmente com o post, na medida em que deve ser exigida segurança no trabalho, mormente no caso em apreço.
No entanto, não gostei de saber da "greve" que os juízes "decretaram", pois ficam prejudicados os cidadãos, que vão ver os seus processos atrasados. A exigência de segurança deveria ser atendida de imediato, a "greve", não.
Nota - Os habitantes da Feira não gostam que chamem à sua cidade Vila da Feira, pois que há anos lhe foi mudado para Santa Maria da Feira. Ficam fulos!

2 de julho de 2008 às 19:17  
Blogger R. da Cunha said...

Rectifico: "...pois há anos lhe foi mudado O NOME para..."

2 de julho de 2008 às 19:26  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A propósito de vilas e de cidades, 2 casos curiosos:

Tanto quanto julgo, Vila Nova de Gaia (já) é cidade.

Sintra é Vila, tem muita honra nisso, e não quer ser cidade.

2 de julho de 2008 às 19:32  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Sendo João Paulo Guerra um dos autores-convidados deste blogue, a sua crónica de hoje, no «DE», esteve para ser aqui afixada, em vez da que acabou por o ser.
Aqui fica ela:

«VIOLÊNCIA

Alunos já batiam nos professores. “Populares” já batiam nos polícias. Agora, arguidos batem e ameaçam magistrados em plena sala de audiências. Os médicos e os padres que se cuidem: um diagnóstico mais sombrio, uma penitência mais pesada e serão as próximas vítimas. A sociedade portuguesa atingiu um nível nunca visto de agressividade.

Mas seria de prever o contrário, numa sociedade que pratica o grau zero do civismo, que cultiva com certa vaidade a grosseria, que despreza a instrução, a cultura, a solidariedade, os valores civilizacionais e que ergue como modelo qualquer arranjista de sucesso que trepa na vida pela falta de escrúpulos? Ou não serão estes sinais aterradores de agressividade os sucedâneos naturais de uma sociedade que não funciona, de escolas que formam o insucesso, de autoridades que se abstêm, de mecanismos de justiça que nem Kafka imaginou, da arrogância e autismo do poder?

A exacerbada agressividade na sociedade portuguesa será também o estuário natural de uma crise infinita, que recebe outras crises como afluentes e que lança os portugueses para um horizonte de desigualdade, sem remédio e sem esperança. De todos os índices da desgraça portuguesa talvez o mais significativo seja o pessimismo, a descrença, o desespero sempre crescente. E que faz um desesperado perante mais um capítulo do seu desespero? É provável que expluda.

A vida democrática em Portugal é uma mera balela, que se resume a formalismos. Aqui há uns anos ainda se barafustava contra o patrão, se discutia na comunidade de moradores, se protestava na empresa ou no sindicato. Agora o melhor é ficar calado. E encher. E um dia explodir. Já vimos muito mas ainda não vimos nada. Isto ainda acaba mal.»

2 de julho de 2008 às 19:49  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Em contraste com a displicência com que Alberto Costa tratou o assunto, António Costa, n' «A Quadratura do Círculo», não teve 'papas na língua':

Considerou que o caso do Tribunal da Feira é grave, e fruto do desinvestimento do Estado em funções de soberania.
Segundo nos disse, em Portugal há mais dinheiro para a Agricultura do que para a Justiça e a Segurança, somadas!

2 de julho de 2008 às 21:37  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

R. da Cunha,

Vou corrigir o nome da povoação.

3 de julho de 2008 às 14:02  
Blogger R. da Cunha said...

Povoação?! Pior a emenda que o soneto. Mas que maldade a sua!...
(Não tenho qualquer ligação ao Povoado, perdão ao Povoado)

3 de julho de 2008 às 19:41  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

R. da Cunha,

Tem toda a razão...

Então, que tal "urbe"?

4 de julho de 2008 às 12:10  
Blogger R. da Cunha said...

Ora aí está o termo adequado. (Cheguei a recear que lhe chamasse localidade...)Bem haja pela atenção dispensada, em nome dos Feirenses (creio que são assim denominados os habitantes de S.ª. Maria da Feira).

4 de julho de 2008 às 22:33  

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