23.10.09

Os azares delas

Por Joaquim Letria

QUANDO EU ERA JOVEM, o aborto era um recurso. Passava-se a vida às escondidas, ela a fazer contas de cabeça para os tais dias bons, ele com o credo na boca, não se tivesse ela enganado. Comprar camisinhas era tão difícil como arranjar estreptomicina sem receita, os preservativos davam a sensibilidade dum pneu Michelin e era um cansaço a chegada da felicidade com ambos a gritarem ”tira, tira!”.

Nesse tempo, o medo era a procriação. Não havia SIDA e as blenorragias não costumavam frequentar as meninas de família. ”Estou grávida, preciso que me pagues um aborto”, diziam elas assustadas, o que era feito apressadamente, mal e porcamente, numa “mulher de virtude”, porque senão vinha a gravidez e era casamento obrigatório ou, noutras circunstâncias, drama de faca e alguidar, antes da inevitável chegada dum anjinho sem culpa dos apetites dos papás de ocasião.

Estes factos adensam a minha estupefacção ao saber, pela Direcção Geral de Saúde, que hoje, em Portugal, há mais de 20 mil mulheres que todos os anos fazem um aborto. Uma médica amiga explicou-me que isto acontece por falta de educação, não por falta de informação. As mulheres sabem tudo, mas queixam-se de azar porque o médico de família receita um aborto, se for preciso. O que é muito diferente dos recursos do tempo em que eu era jovem, em que nem havia pílula do dia seguinte. Hoje, o aborto é uma espécie de joker que sai frequentemente.

«24 horas» de 22 de Outubro de 2009

Etiquetas: