Irresponsáveis e perigosos
Por Rui Tavares
QUEM ESPIA um jornalista, também escuta um político, chantageia um empresário ou viola os direitos de qualquer cidadão.
Parece que o governo anda à procura de serviços do Estado para extinguir. Sugiro então que façamos uma experiência.
Imagine-se um serviço do Estado do qual os cidadãos não sabem o que faz — ou, quando sabem, é porque há notícias de que faz coisas ilegais. Imagine-se um serviço do Estado que só pode ser controlado quando é para dizer que está tudo bem. Mas que, quando não está tudo bem, representa um perigo para o próprio estado de direito.
Então, que vos parece? Um candidato à extinção imediata? Bem, a verdade é que esse serviço existe. Até são dois: o SIS e o SIED.
Ah, diz o governo, mas esses serviços são muito importantes! São as “secretas”, uma interna e outra externa. O estado — que pode prescindir do serviço público de televisão, de uma transportadora aérea, de um ministério da cultura, da água pública e de mais uma montanha de coisas — não pode prescindir de ter duas “secretas”.
Isto agora não é preciso imaginar; aconteceu: um dirigente máximo do SIED enviava informação privilegiada a empresas privadas a partir do seu email doméstico, demitiu-se nas vésperas de um evento em que estava em causa o interesse nacional, e foi contratado por uma das empresas a que enviava informação. Foi noticiado que este senhor pertence a uma loja maçónica importante para algumas pessoas do PSD, da qual se diz que nutre rivalidades com outras lojas maçónicas onde há gente do PS. O Expresso garante que ele mandou investigar as comunicações telefónicas de um jornalista do Público — o que é duplamente ilegal, pois além de uma invasão de privacidade, é espionagem interna, vedada ao SIED.
No meio de tudo isto, o primeiro-ministro tem na mão um relatório sobre o SIED que não envia ao Parlamento porque, segundo diz, este revela nomes de espiões e métodos de investigação. Estamos portanto a brincar com coisas sérias. Os nomes de espiões rasuram-se, como é evidente, antes de enviar os documentos. Quanto ao resto do conteúdo, em que deputados não confia o primeiro-ministro? Nos da oposição — ou nos da maioria?
Será preciso explicar ao governo que é ele que depende do Parlamento e não o contrário?
Os serviços secretos têm tido uma vida privilegiada, em Portugal e no resto do mundo. Numa década em que os estados cortaram em tudo, de hospitais a universidades e infantários, eles cresceram até serem maiores do que em qualquer momento da história, mesmo quando havia guerra fria ou duas guerras mundiais.
Quanto menos controlados são estes serviços, mais susceptíveis de abuso se tornam. Quanto mais irresponsáveis, mais perigosos. Quem espia um jornalista, também escuta um político, chantageia um empresário ou viola os direitos de qualquer cidadão. Um cartão das “secretas” e o “segredo de estado” é quanto basta para que um técnico de uma operadora telefónica se vergue primeiro e negue depois.
No Leste da Europa o panorama é preocupante: nas secretas dispõem-se camadas sucessivas de espiões oriundos de governos opostos. Os ministros do interior vivem fascinados por estes serviços como rapazinhos por jogos eletrónicos. As notícias de abusos são constantes, mas só se conhecem através de vinganças internas, pois o controlo parlamentar é nulo.
Estaremos longe disto em Portugal? Não quero mandar palpites. Quero saber. O parlamento tem todas as condições — sessões à porta fechada, responsabilização dos deputados — para descobrir e, sobretudo, para evitar que cheguemos lá. Ou se limpam e arrumam as “secretas”, com garantias para o estado de direito, ou é melhor acabar com elas.
Uma última nota, muito a propósito: o governo quer agora enviar à Assembleia da República um acordo de transferência de dados pessoais de cidadãos portugueses para os EUA, à revelia do parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Relembro que já há vários meses os meus colegas Ana Gomes, do PS, Carlos Coelho, do PSD, e eu mesmo, alertámos para várias questões de conteúdo e oportunidade deste acordo, no quadro das negociações UE-EUA para proteção de dados, e nos pusémos à disposição do parlamento para quaisquer esclarecimentos nestas matérias.
In RuiTavares.Net / 30 de Agosto de 2011
QUEM ESPIA um jornalista, também escuta um político, chantageia um empresário ou viola os direitos de qualquer cidadão.
Parece que o governo anda à procura de serviços do Estado para extinguir. Sugiro então que façamos uma experiência.
Imagine-se um serviço do Estado do qual os cidadãos não sabem o que faz — ou, quando sabem, é porque há notícias de que faz coisas ilegais. Imagine-se um serviço do Estado que só pode ser controlado quando é para dizer que está tudo bem. Mas que, quando não está tudo bem, representa um perigo para o próprio estado de direito.
Então, que vos parece? Um candidato à extinção imediata? Bem, a verdade é que esse serviço existe. Até são dois: o SIS e o SIED.
Ah, diz o governo, mas esses serviços são muito importantes! São as “secretas”, uma interna e outra externa. O estado — que pode prescindir do serviço público de televisão, de uma transportadora aérea, de um ministério da cultura, da água pública e de mais uma montanha de coisas — não pode prescindir de ter duas “secretas”.
Isto agora não é preciso imaginar; aconteceu: um dirigente máximo do SIED enviava informação privilegiada a empresas privadas a partir do seu email doméstico, demitiu-se nas vésperas de um evento em que estava em causa o interesse nacional, e foi contratado por uma das empresas a que enviava informação. Foi noticiado que este senhor pertence a uma loja maçónica importante para algumas pessoas do PSD, da qual se diz que nutre rivalidades com outras lojas maçónicas onde há gente do PS. O Expresso garante que ele mandou investigar as comunicações telefónicas de um jornalista do Público — o que é duplamente ilegal, pois além de uma invasão de privacidade, é espionagem interna, vedada ao SIED.
No meio de tudo isto, o primeiro-ministro tem na mão um relatório sobre o SIED que não envia ao Parlamento porque, segundo diz, este revela nomes de espiões e métodos de investigação. Estamos portanto a brincar com coisas sérias. Os nomes de espiões rasuram-se, como é evidente, antes de enviar os documentos. Quanto ao resto do conteúdo, em que deputados não confia o primeiro-ministro? Nos da oposição — ou nos da maioria?
Será preciso explicar ao governo que é ele que depende do Parlamento e não o contrário?
Os serviços secretos têm tido uma vida privilegiada, em Portugal e no resto do mundo. Numa década em que os estados cortaram em tudo, de hospitais a universidades e infantários, eles cresceram até serem maiores do que em qualquer momento da história, mesmo quando havia guerra fria ou duas guerras mundiais.
Quanto menos controlados são estes serviços, mais susceptíveis de abuso se tornam. Quanto mais irresponsáveis, mais perigosos. Quem espia um jornalista, também escuta um político, chantageia um empresário ou viola os direitos de qualquer cidadão. Um cartão das “secretas” e o “segredo de estado” é quanto basta para que um técnico de uma operadora telefónica se vergue primeiro e negue depois.
No Leste da Europa o panorama é preocupante: nas secretas dispõem-se camadas sucessivas de espiões oriundos de governos opostos. Os ministros do interior vivem fascinados por estes serviços como rapazinhos por jogos eletrónicos. As notícias de abusos são constantes, mas só se conhecem através de vinganças internas, pois o controlo parlamentar é nulo.
Estaremos longe disto em Portugal? Não quero mandar palpites. Quero saber. O parlamento tem todas as condições — sessões à porta fechada, responsabilização dos deputados — para descobrir e, sobretudo, para evitar que cheguemos lá. Ou se limpam e arrumam as “secretas”, com garantias para o estado de direito, ou é melhor acabar com elas.
Uma última nota, muito a propósito: o governo quer agora enviar à Assembleia da República um acordo de transferência de dados pessoais de cidadãos portugueses para os EUA, à revelia do parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Relembro que já há vários meses os meus colegas Ana Gomes, do PS, Carlos Coelho, do PSD, e eu mesmo, alertámos para várias questões de conteúdo e oportunidade deste acordo, no quadro das negociações UE-EUA para proteção de dados, e nos pusémos à disposição do parlamento para quaisquer esclarecimentos nestas matérias.
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